Por Carlos Borrelli
Antes de tudo, precisamos voltar os olhos à compreensão do que significa autodeterminação. Trata-se de um princípio fundamental no Direito Civil contemporâneo, diretamente vinculado à noção de dignidade da pessoa humana[1] e à liberdade privada.
Cuida-se da capacidade que o indivíduo tem de reger sua própria vida, realizar escolhas pessoais e dispor de seus bens e interesses, desde que respeitados os limites legais impostos pela segurança jurídica e os direitos de terceiros.
No âmbito do Código Civil, a autodeterminação se manifesta especialmente por meio da autonomia da vontade, que orienta os negócios jurídicos (Arts. 104 e 421 do CC). O Art. 104, por exemplo, estabelece que a validade do negócio jurídico requer agente capaz e vontade livre, sendo este o núcleo da autodeterminação na esfera contratual e patrimonial. Por sua vez, o princípio da função social (Art. 421 do CC) atua como limite externo à autonomia privada, assegurando que o exercício da autodeterminação não viole valores coletivos ou cause danos a terceiros. Assim, o ordenamento jurídico brasileiro adota uma concepção relativizada de autonomia, que se concretiza em harmonia com outros princípios constitucionais e civis.
No plano existencial, a autodeterminação é igualmente relevante. Ela se expressa, por exemplo, na escolha do nome[2], no consentimento informado em procedimentos médicos, e no direito ao planejamento familiar[3].
Outra expressão importante é o direito de dispor antecipadamente sobre questões relativas ao fim da vida, por meio das chamadas diretivas antecipadas de vontade — instituto que, embora não previsto expressamente no Código Civil, encontra amparo no princípio da dignidade da pessoa humana e na Resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina.
A jurisprudência tem reconhecido a importância da autodeterminação como expressão da liberdade individual. Destaca-se, por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 126.292/SP, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 17.02.2016, que embora trate da execução penal, reforça o entendimento de que a dignidade da pessoa humana é indissociável da liberdade de escolha e da responsabilidade individual pelas próprias decisões.
No campo civil, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reafirmado esse entendimento, conforme segue:
“A possibilidade de modificação do nome civil é admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro quando presente justo motivo, notadamente para preservar o direito à identidade pessoal e à autodeterminação individual.” (STJ, REsp 1.647.255/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 26/06/2018, DJe 29/06/2018).
Outra relevante manifestação encontra-se no julgamento que reconhece as diretivas antecipadas de vontade como expressão legítima da autodeterminação existencial:
“As diretivas antecipadas de vontade representam legítima manifestação do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à autodeterminação, sendo possível sua consideração pelo médico responsável em situações de terminalidade da vida.” (TJSP, Apelação Cível 1001336-61.2019.8.26.0506, Rel. Des. Francisco Loureiro, 1ª Câmara de Direito Privado, julgado em 20/10/2020)
A doutrina reconhece a centralidade da autodeterminação na ordem civil. Segundo Maria Helena Diniz, “a autodeterminação individual é a exteriorização da liberdade de agir da pessoa humana, limitada pelo ordenamento jurídico e pelo interesse social”[4].
É importante destacar que a autodeterminação, embora essencial, não é absoluta. O Código Civil prevê restrições à capacidade civil plena (arts. 3º e 4º), justamente para proteger aqueles que, por razões naturais ou circunstanciais, não estejam aptos a exercer sua vontade de forma plenamente consciente e responsável.
Por fim, pode-se afirmar que a autodeterminação representa uma conquista do direito privado moderno, alinhada aos valores fundamentais da Constituição de 1988. Seu respeito é condição para a promoção da liberdade, da igualdade e da dignidade, pilares do Estado Democrático de Direito.
Voltando ao tema principal, a crescente complexidade das relações patrimoniais no âmbito familiar tem impulsionado a adoção de cláusulas contratuais atípicas nos pactos antenupciais, entre as quais se destaca a chamada sunset clause, expressão oriunda do direito anglo-saxão que pode ser traduzida como “cláusula do pôr do sol”. É um tipo de cláusula que determina até quando vale determinada escolha ou condição. Assim, quando o prazo acaba, a situação muda ou deixa de existir. É como o pôr do sol que marca o fim do dia e o começo da noite — por isso o nome.
Essa ideia pode ser muito útil, por exemplo, quando duas pessoas vão se casar e escolhem um regime de bens. Essa escolha normalmente é feita por meio do pacto antenupcial, que é um contrato assinado antes do casamento, ou escritura pública no momento da concretização da união estável, no qual os noivos e os companheiros definem como será a administração e a divisão dos bens. Com a sunset clause, esse pacto poderia prever que, após certo tempo de relacionamento, ou diante de alguma mudança de situação (p. ex., nascimento de filhos ou mudança de patrimônio), o regime de bens será revisto ou passará a ser outro, previamente combinado. Isso traz mais flexibilidade e permite que o casamento acompanhe a evolução da vida do casal.
Além do pacto antenupcial, que é firmado antes do casamento ou união estável, existe também o pacto pós-nupcial, que pode ser celebrado após o casamento ou a formalização da união estável, caso o casal queira alterar as regras definidas no início da união. Essa possibilidade traz uma vantagem: oferece flexibilidade para que o casal possa revisar as condições do relacionamento conforme o tempo passa, sem precisar recorrer a longos e complicados processos judiciais.
A sunset clause pode ser aplicada a esse pacto pós-nupcial, permitindo que o regime de bens ou outras condições do casamento ou união estável sejam ajustados de acordo com o tempo ou circunstâncias específicas, como o crescimento financeiro do casal ou mudanças significativas na vida conjugal. Assim como no pacto antenupcial, o casal tem a liberdade de definir uma “data de validade” para certas regras, oferecendo maior segurança jurídica e controle sobre a evolução de sua vida em comum.
Com a reforma do Código Civil e a evolução da legislação, a aceitação e regulação de pactos pós-nupciais têm ganhado mais atenção, permitindo que casais que já estão casados possam, de forma legal e transparente, estabelecer novos acordos sobre seu regime de bens e outras questões patrimoniais. A sunset clause se encaixa bem nesse cenário, proporcionando uma solução prática para que o contrato de casamento ou união estável se ajustem conforme a realidade do casal muda ao longo do tempo.
Trata-se, portanto, de um instrumento de gestão patrimonial estratégica, que permite aos nubentes maior previsibilidade e flexibilidade na organização dos efeitos econômicos do casamento. Um exemplo comum é a estipulação da separação convencional de bens pelos primeiros cinco anos de casamento, com posterior adoção da comunhão parcial, caso não haja oposição expressa das partes. A lógica subjacente à cláusula é a de que, superado um período inicial considerado de risco ou de instabilidade (por exemplo, diferença patrimonial significativa entre os cônjuges, exposição empresarial, ou período de estruturação familiar), as condições da vida comum justificariam um modelo patrimonial mais integrativo.
Contudo, no ordenamento jurídico brasileiro, essa cláusula encontra limites relevantes, especialmente à luz do artigo 1.639, §2º, do Código Civil, que condiciona a alteração do regime de bens após o casamento à autorização judicial mediante pedido motivado de ambos os cônjuges:
Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.
§ 2º – É admissível a alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.
A jurisprudência brasileira tem interpretado esse dispositivo de forma cautelosa. O STJ já se manifestou no sentido de que a alteração do regime de bens somente será admitida quando houver motivação legítima e quando restar demonstrado que não há prejuízo a terceiros[5].
Ainda que a sunset clause represente um exercício legítimo da autonomia privada, ela não possui eficácia automática no ordenamento brasileiro. Trata-se de uma expectativa contratual, cuja concretização depende da homologação judicial posterior, o que impõe aos operadores do direito a responsabilidade de esclarecer às partes que a cláusula opera como manifestação de vontade futura, condicionada à chancela do Poder Judiciário.
Adicionalmente, a validade da sunset clause deve ser examinada sob os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da proteção à parte vulnerável, todos basilares no Direito das Famílias contemporâneo. Se a cláusula for redigida de modo a impor desequilíbrio injustificado ou desvantagem excessiva a uma das partes, poderá ser considerada nula ou ineficaz. Em casos extremos, pode-se cogitar a aplicação do Art. 156 do Código Civil, tratando-se de vício de consentimento por estado de perigo ou mesmo simulação contratual.
Todavia, com o objetivo de reforçar a segurança jurídica nas relações familiares, a Comissão de Juristas designada pelo Senado Federal, sob a presidência do Ministro Luis Felipe Salomão, propôs importantes atualizações no Código Civil. Um dos focos centrais da reforma é ampliar a autonomia dos indivíduos na condução de seus próprios arranjos familiares, respeitando suas escolhas pessoais e os diferentes contextos de vida.
Nesse cenário, ganha destaque a proposta de modificação do Art. 1.639 do Código Civil, em especial em relação ao § 2º que atualmente limita a escolha do regime de bens ao momento anterior ao casamento, mediante pacto antenupcial, cuja alteração do regime de bens a ser feita posteriormente, dependerá de autorização judicial.
A proposta de alteração do apontado parágrafo segundo é a que segue:
§ 2° Depois da celebração do casamento ou do estabelecimento da união estável, o regime de bens pode ser modificado por escritura pública e só produz efeitos a partir do ato de alteração, ressalvados os direitos de terceiros.
A Comissão sugere que o dispositivo passe a admitir, de forma expressa, a necessidade de um espaço com maior aplicação da autonomia privada. Veja-se a redação do dispositivo sugerido pelo Anteprojeto, o qual cria o Art. 1.653-B:
Art. 1.653-B. Admite-se convencionar no pacto antenupcial ou convivencial a alteração automática de regime de bens após o transcurso de um período de tempo prefixado, sem efeitos retroativos, ressalvados os direitos de terceiros
A introdução normativa da cláusula sunset no ordenamento civil brasileiro representa uma abertura significativa para o reconhecimento de pactos conjugais mais dinâmicos. Ao permitir que os cônjuges combinem, desde o início da relação, um modelo patrimonial com prazo de validade e substituição automática por outro regime, o legislador busca conciliar estabilidade jurídica com a adaptabilidade necessária à realidade das famílias modernas.
Essa possibilidade dialoga diretamente com o princípio da intervenção mínima do Estado nas relações privadas e com a valorização da vontade das partes, pilares fundamentais do Direito Civil contemporâneo. A cláusula temporal atua como ferramenta de planejamento, permitindo que os cônjuges projetem diferentes fases do casamento com regras patrimoniais distintas, conforme seus objetivos pessoais e financeiros.
Importante observar que, embora o dispositivo proposto trate expressamente da alteração automática de regime por decurso de tempo, sua aplicação deve respeitar os limites constitucionais e legais da autonomia privada, bem como eventuais exigências de proteção de terceiros — especialmente credores. Portanto, ainda que haja previsão contratual válida, será essencial que o novo regime não cause prejuízos nem fragilize garantias legalmente constituídas sob o regime anterior.
A inovação trazida por essa cláusula está em linha com uma tendência global de flexibilização das normas de direito de família, aproximando o Brasil de países que já admitem mecanismos semelhantes para organizar os efeitos patrimoniais do casamento com maior previsibilidade e liberdade contratual.
Essa mudança não apenas valoriza a autonomia privada, mas também legitima o exercício consciente da autodeterminação nas relações afetivas, permitindo que os cônjuges ajustem seus vínculos jurídicos à medida que suas vidas evoluem.
É nesse novo contexto que a sunset clause também encontra campo fértil para aplicação. A ideia é permitir que, mesmo após o início da vida conjugal, os cônjuges possam livremente acordar uma mudança futura e programada no regime de bens, com base em termo certo — como um prazo de convivência, um marco familiar ou profissional, entre outros. Essa cláusula traria previsibilidade às alterações patrimoniais e reforçaria a autonomia dos cônjuges, ao mesmo tempo em que estaria subordinada ao controle judicial para resguardar a segurança jurídica e a proteção de terceiros.
No entanto, a inserção da sunset clause em pacto pós-nupcial exige atenção redobrada. Em primeiro lugar, por envolver alteração de regime de bens já vigente, será sempre necessária a demonstração da existência de um motivo legítimo e a inexistência de lesão a direitos de terceiros — requisitos que já vêm sendo exigidos pela jurisprudência consolidada do STJ.
Em segundo lugar, a cláusula com termo futuro deve ser suficientemente clara e objetiva quanto ao momento e ao conteúdo da alteração patrimonial prevista, evitando ambiguidade ou incerteza que comprometam sua validade. Afinal, o próprio espírito da cláusula sunset reside em sua função de promover segurança e previsibilidade, e não o contrário.
Por fim, a eventual admissão legal expressa desse tipo de pacto, com cláusulas de vigência programada, reforça o movimento de reconhecimento da pluralidade das formas de constituição familiar, ampliando o espaço para a liberdade contratual e para o planejamento patrimonial personalizado — pilares do Direito Civil moderno.
No entanto, sua implementação deve ser conduzida com cautela a fim de evitar abusos e garantir que as modificações contratuais não gerem efeitos indesejados ou litigiosos.
[1] Constituição Federal, art. 1º, III.
[2] Código Civil, Arts. 16 a 19.
[3] Constituição Federal, Art. 226, §7º.
[4] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Parte Geral, 39. ed., São Paulo: Saraiva, 2022, p. 117.
[5] STJ, REsp 1.623.858/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 23/10/2018, DJe 08/11/2018.
Carlos Borrelli é advogado especializado em planejamento sucessório e direito tributário, e sócio-fundador do Carlos Borrelli Advogados Associados, com sede em Curitiba/PR.
