A Lei nº 14.754/2023, que dispõe sobre a tributação de aplicações financeiras, entidades controladas e trusts no exterior, representou um marco na legislação tributária brasileira, buscando adequar a tributação de rendimentos auferidos por residentes fiscais no Brasil, ainda que originados em jurisdições estrangeiras. No contexto desta nova legislação, a Solução de Consulta COSIT nº 75/2025 emergiu como um guia interpretativo da RFB, especialmente no que tange à tributação de trusts irrevogáveis e discricionários, cujos beneficiários residem no Brasil.
A análise da solução de consulta revela uma interpretação extensiva da lei, que merece ser examinada à luz dos princípios constitucionais tributários e da legislação infraconstitucional. Busca-se, neste artigo, analisar criticamente a abordagem da RFB, confrontando-a com os argumentos dos contribuintes e com a doutrina especializada, a fim de determinar a validade e a razoabilidade das obrigações tributárias impostas aos beneficiários de trusts com características específicas.
Trusts: Aspectos Essenciais e Classificação
O trust é um instituto jurídico de origem anglo-saxônica, caracterizado pela relação fiduciária na qual um indivíduo (o settlor ou instituidor) transfere a propriedade de bens e direitos para outro (o trustee), que os administra em benefício de terceiros (os beneficiários). A legislação brasileira não disciplina diretamente o trust, mas admite sua utilização, desde que não contrarie as normas de ordem pública e os bons costumes, conforme o art. 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Os trusts podem ser classificados de diversas formas, sendo relevante para o presente estudo a distinção entre trusts revogáveis e irrevogáveis, e entre trusts discricionários e não discricionários.
Os trusts irrevogáveis são aqueles em que o settlor renuncia ao direito de modificar ou extinguir o trust. Já os trusts discricionários, também conhecidos como complex trusts, conferem ao trustee ampla liberdade na administração dos bens e na distribuição dos rendimentos aos beneficiários, seguindo as diretrizes gerais estabelecidas pelo settlor, mas sem obrigatoriedade de distribuição imediata ou em proporções fixas.
Conforme leciona Ricardo Alexandre, “a complexidade dos trusts reside na variedade de cláusulas e condições que podem ser estabelecidas pelo instituidor, tornando cada trust um instrumento único, adaptado às necessidades e objetivos específicos das partes envolvidas”[1].
A Interpretação da RFB e a Tributação da “Expectativa de Direito”
A Solução de Consulta COSIT nº 75/2025 estabelece que, para fins de tributação pela Lei nº 14.754/2023, o instituidor do trust é sempre a pessoa física titular original do patrimônio, mesmo que o aporte seja realizado por pessoa jurídica estrangeira, exigindo o rastreamento da cadeia patrimonial. Mais relevante, contudo, é a interpretação de que os beneficiários de trusts irrevogáveis são considerados titulares do patrimônio desde a instituição, independentemente da distribuição efetiva ou da existência de condições suspensivas.
Para a RFB, a mera “indicação” como beneficiário seria suficiente para atrair a tributação.
Essa interpretação da RFB equipara a “expectativa de direito” à efetiva titularidade, o que implica na obrigatoriedade de declarar os ativos do trust na Declaração de Bens e Direitos (DAA) e na necessidade de apurar e recolher impostos sobre rendimentos e ganhos de capital, mesmo que o beneficiário não tenha acesso aos ativos ou aos rendimentos gerados.
Esse entendimento afronta o conceito de renda tributável, conforme estabelecido no art. 43 do Código Tributário Nacional (CTN), que exige a disponibilidade econômica ou jurídica da renda para que esta seja passível de tributação. Conforme ensina Hugo de Brito Machado Segundo, “a disponibilidade econômica significa o poder de usar, gozar e dispor da renda; a disponibilidade jurídica, por sua vez, consiste na existência de um direito subjetivo à percepção da renda, ainda que esta não esteja efetivamente disponível”[2].
No caso de trusts discricionários com condições suspensivas, a mera indicação como beneficiário não confere a este a disponibilidade econômica ou jurídica da renda, uma vez que a decisão de distribuir os bens e rendimentos é exclusiva do trustee, estando sujeita a critérios subjetivos e contingências futuras.
Contrapontos e a Violação de Princípios Constitucionais Tributários
A tributação de beneficiários sob condição suspensiva é tema controverso, pois não há acréscimo patrimonial real enquanto a condição não se concretizar. A insistência da RFB em tributar a mera “expectativa de direito” pode violar o princípio da capacidade contributiva, insculpido no art. 145, §1º, da Constituição Federal. Este princípio exige que a tributação seja proporcional à capacidade econômica do contribuinte, o que pressupõe a existência de um patrimônio efetivamente disponível e acessível.
Ao tributar um patrimônio potencial e não acessível, a RFB impõe um ônus excessivo ao contribuinte, que pode ser compelido a declarar e tributar ativos e rendas que, na prática, jamais possuirá.
A situação gera insegurança jurídica e compromete a proporcionalidade da tributação, desvirtuando a finalidade do imposto de renda, que é tributar a riqueza efetivamente gerada e disponível.
Conclusão
A análise da Solução de Consulta COSIT nº 75/2025 e da Lei nº 14.754/2023 revela uma interpretação extensiva da RFB, que visa tributar trusts irrevogáveis e discricionários de forma mais abrangente. Essa interpretação, ao equiparar a mera indicação como beneficiário à titularidade do patrimônio, mesmo em condições suspensivas, gera obrigações tributárias desproporcionais e questionáveis, que podem violar os princípios da capacidade contributiva e da disponibilidade econômica ou jurídica da renda.
Embora a busca por maior transparência fiscal e a repressão à evasão fiscal sejam objetivos legítimos, é fundamental que a interpretação da lei seja realizada de forma razoável e proporcional, respeitando os direitos dos contribuintes e garantindo a segurança jurídica.
A tributação de trusts com beneficiários residentes no Brasil exige uma análise criteriosa de cada caso concreto, levando em consideração as características específicas do trust, as condições estabelecidas pelo settlor e a efetiva disponibilidade dos bens e rendimentos aos beneficiários.
Recomenda-se, portanto, que os contribuintes busquem o aconselhamento de profissionais advogados especializados para avaliar a sua situação específica e adotar as medidas cabíveis para proteger seus direitos e evitar autuações fiscais indevidas.
[1] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 30° ed. São Paulo: Método, 2024, p. 250.
[2] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Manual de Direito Tributário. 14° ed. São Paulo: Atlas, 2022, p. 210.
Beatriz Martins Degrossi é advogada especialista em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) e em Planejamento Patrimonial e Sucessório pela PUC-MG.
LANÇAMENTO DA EDITORA B18 CONTEMPLANDO AS REGRAS DA LEI Nº 14.754/2023

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