Por David Roberto R. Soares da Silva
2025 será o primeiro ano em que a pessoa física residente no Brasil deverá reportar e tributar o lucro de entidades controladas no exterior, as chamadas empresas offshore, em sua Declaração de Ajuste Anual (DAA). O que poderia parecer ser uma coisa simples – reportar e tributar o lucro na DAA – tem se mostrado uma tarefa um tanto complexa, especialmente no que diz respeito à variação positiva de ativos financeiros.
Contabilização de ativos financeiros em empresas offshore
A Lei nº 14.754/2023[1] determina que o lucro das empresas offshore (em paraíso fiscal ou com renda passiva superior a 40%) deve ser apurado de acordo com os padrões contábeis brasileiros. As regras contábeis adotadas pelo Brasil, por sua vez, determinam que a entidade deve classificar os ativos financeiros com base tanto: (a) nas características de fluxo de caixa contratual do ativo financeiro, quanto (b) no modelo de negócio da entidade para a gestão dos ativos financeiros. Essa sistemática está contida no IFRS 9, refletida no Brasil no CPC 48. O CPC 48, que é o padrão contábil brasileiro na acepção da Lei nº 14.754/2023, apresenta três métodos para classificação de ativos financeiros para fins contábeis, sendo eles:
- Custo amortizado (CA);
- Valor Justo por meio de Outros Resultados Abrangentes (VJORA);
- Valor Justo por meio do Resultado (VJRE ou VJR).
Desconsideremos o CA, dado que se aplica a situações muito específicas, e nos concentremos nos outros dois.
Pelo VJORA, a valorização de um ativo financeiro durante o ano – desde que não seja vendido – não afeta o resultado (lucro) da empresa, pois é registrado em uma conta de patrimônio líquido (chamada de “outros resultados abrangentes”). Ele somente comporá o lucro da entidade quando for realizado (vendido). Em termos “mais simples”, o VJORA permite que lucros não realizados (meras valorizações) não afetem o lucro e, por consequência, não seja tributado na DAA da pessoa física.
Sob o VJRE, por sua vez, essa valorização (ou desvalorização) do ativo financeiro deve ser refletida diretamente no resultado da entidade, ou seja, no lucro do exercício, o que, para fins da Lei nº 14.754/2023, significa dizer que a mera valorização acaba por ser tributada na DAA (sendo a perda dedutível).
A adoção de um ou outro critério não depende de mera escolha ou conveniência; ela deve se basear em certos parâmetros estabelecidos pelo CPC 48, que leva em consideração o recebimento de fluxos de caixa (exemplo, juros) e o modelo de negócio (política de investimento) da empresa.
Dado que o VJORA pode permitir certo diferimento de lucro para o momento em que o ativo financeiro é efetivamente realizado, a Receita Federal já manifestou o seu “entendimento” de que a regra geral é a adoção do VJRE, podendo o VJORA ser adotado em situações excepcionais e devidamente fundamentadas. O fisco chega ao ponto de ameaçar com fiscalizações e autuações contra aqueles que ousarem discordar.
Pois bem, o foco aqui não são os investimentos financeiros em geral, mas sim os criptoativos e como eles devem ser classificados e mensurados para fins de apuração do lucro das empresas offshore. O tema é relevante dada a alta valorização – e volatilidade – desses ativos nos últimos anos, especialmente o bitcoin, e a sua utilização como forma de investimento.
Se adotado o VJORA, a mera valorização do criptoativo não afeta o lucro da empresa, nem o IR a pagar na DAA. Por outro lado, no VJRE, essa valorização pode significar um pagamento vultoso de IR ainda que o criptoativo não seja vendido.
Esse tema tem sido objeto de intensos debates entre contadores, advogados e titulares de empresas offshore, dado o potencial de aumentar o IR a pagar desses últimos. Muitos especialistas entendem não ser possível adotar o VJORA para a valorização de criptoativos detidos por empresas offshore, pois eles não geram fluxos de caixa em datas predeterminadas. Como consequência, alguns têm recomendado seguir o entendimento da Receita Federal e alocar a valorização desses ativos diretamente no resultado, de acordo com o VJRE, afetando (leia-se aumentando) o IR a pagar.
Criptoativos como ativos financeiros?
Peço licença para mudar o foco da discussão, pois VJRE e VJORA, na minha opinião são absolutamente irrelevantes quando o assunto é criptoativo. E isso por uma simples razão: o VJRE/VJORA se aplicam à contabilização de ativos financeiros. Ora, quem disse que criptoativo é ativo financeiro que deve observar o CPC 48, o VJORA, ou o VJRE?
Uma análise das regras da própria Receita Federal e dos padrões contábeis vigentes no Brasil nos leva à conclusão de que criptoativos não seriam ativos financeiros e que, portanto, o CPC 48 não se aplicaria, e tampouco o VJORA ou o VJRE, senão vejamos.
Criptoativos/criptomoedas detidos por pessoa física no Brasil
Para a pessoa física que investe diretamente em criptoativos ou criptomoedas no Brasil (via exchange brasileira ou com token aqui no Brasil), não há dúvidas de que o tratamento dos ganhos é de ganho de capital e não de rendimento de aplicações financeiras. Nesse sentido, por exemplo, a Solução de Consulta COSIT nº 214/2021 formaliza a posição da Receita Federal, que entende que os ganhos na venda de criptomoedas são tributados pelas alíquotas de ganho de capital (15% a 22,5%):
“IRPF. INCIDÊNCIA. ALIENAÇÃO DE CRIPTOMOEDAS. ISENÇÃO – OPERAÇÕES DE PEQUENO VALOR. R$ 35.000,00.
O ganho de capital apurado na alienação de criptomoedas, quando uma é diretamente utilizada na aquisição de outra, ainda que a criptomoeda de aquisição não seja convertida previamente em real ou outra moeda fiduciária, é tributado pelo imposto sobre a renda da pessoa física, sujeito a alíquotas progressivas, em conformidade com o disposto no art. 21 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995.”
Esse mesmo entendimento consta da resposta à Pergunta 460 do Perguntas e Respostas de IRPF 2024 em que a Receita Federal expressamente diz que “os criptoativos não são considerados moeda de curso legal nos termos do marco regulatório atual. Entretanto, podem ser equiparados a ativos sujeitos a ganho de capital (…)”.
Criptoativos/criptomoedas detidos por pessoa física no exterior
Não obstante o tratamento de ganho de capital para os criptoativos/criptomoedas mantidos no Brasil, para aqueles mantidos no exterior pela pessoa física a Lei nº 14.754/2023 alterou o tratamento tributário, passando a considerá-los como aplicações financeiras. É o que dispõe o Art. 3º, § 1º, inciso I da lei, nesses termos:
“Art. 3º Os rendimentos auferidos em aplicações financeiras no exterior pelas pessoas físicas residentes no País serão tributados na forma prevista no art. 2º desta Lei.
§ 1º Para fins do disposto neste artigo, consideram-se:
I – aplicações financeiras no exterior: quaisquer operações financeiras fora do País, incluídos, de forma exemplificativa, depósitos bancários remunerados, certificados de depósitos remunerados, ativos virtuais, carteiras digitais ou contas-correntes com rendimentos, cotas de fundos de investimento, com exceção daqueles tratados como entidades controladas no exterior, instrumentos financeiros, apólices de seguro cujo principal e cujos rendimentos sejam resgatáveis pelo segurado ou pelos seus beneficiários, certificados de investimento ou operações de capitalização, fundos de aposentadoria ou pensão, títulos de renda fixa e de renda variável, operações de crédito, inclusive mútuo de recursos financeiros, em que o devedor seja residente ou domiciliado no exterior, derivativos e participações societárias, com exceção daquelas tratadas como entidades controladas no exterior, incluindo os direitos de aquisição.”
Sendo o criptoativo ou criptomoeda um ativo virtual, quando mantido e negociado no exterior (em uma exchange no exterior), a Lei nº 14.754/2023, excepcionalmente, parece ter alterado a sua natureza para enquadrá-lo como aplicação financeira, fazendo com que o ganho verificado na sua alienação seja tributado à alíquota padrão de 15%, criada pela lei para as aplicações financeiras no exterior.
Vale frisar o “excepcionalmente”, focando no que diz a redação do § 1º: “para fins do disposto neste artigo”, que trata aplicações financeiras mantidas no exterior por pessoa física.
Assim, temos dois tratamentos tributários distintos para o mesmo ativo virtual, a depender de onde se encontra ou onde ele é negociado, a saber:
- Se mantido e negociado no Brasil, o ganho apurado tem natureza de ganho de capital tributado às alíquotas de 15% a 22,5%, devendo o imposto ser pago até o último dia útil do mês seguinte à realização.
- Se mantido e negociado no exterior, o ganho apurado (incluindo a variação cambial) é considerado rendimento de aplicação financeira no exterior, sujeito ao IR à alíquota de 15%, com imposto a ser pago na DAA.
Pode parecer uma contradição, mas é o que diz a legislação em vigor e como entende a Receita Federal.
Ora, e como devem ser tratados os criptoativos detidos por uma empresa offshore para fins de apuração do lucro a ser tributado sob a Lei nº 14.754/2023?
Reconhecimento e mensuração de criptomoedas nos padrões contábeis brasileiros
Inicialmente, vale reiterar que criptoativos/criptomoedas somente são considerados como aplicações financeiras para as pessoas físicas, desde que mantidos ou negociados no exterior, por força do Art. 3º da Lei nº 14.754/2023. Esse artigo, frise-se, não se aplica às pessoas jurídicas, no caso, empresas offshore, cujo tratamento tributário na Lei nº 14.754/2023 não é coberto pelo Art. 3º.
Apesar de serem frequentemente chamadas de “moedas virtuais”, as criptomoedas não atendem à definição contábil de moeda (caixa ou equivalente de caixa) nem de instrumento financeiro. Elas não são dinheiro porque não possuem curso legal e aceitação universal como meio de pagamento e unidade de conta nas demonstrações financeiras. Também não configuram um instrumento financeiro, pois não representam um direito contratual a receber dinheiro ou outro ativo financeiro de uma contraparte.
Em vez disso, criptomoedas possuem as características de ativo “não monetário identificável sem forma física”, o que os enquadra precisamente na definição de ativo intangível contida no CPC 04 (e não no CPC 48 – instrumentos financeiros).
Um ativo pode ser identificado como intangível quando (1) a entidade tiver controle sobre ele e (2) ele for separável, ou seja, puder ser separado da entidade e vendido, transferido, licenciado, alugado ou trocado, individualmente ou junto com um contrato, ativo ou passivo relacionado, independente da intenção de uso pela entidade (CPC 04, item 12).
No caso das criptomoedas, elas são um recurso identificável e negociável individualmente, sem constituir moeda de curso forçado. Em termos de controle, a entidade deve deter poder sobre o ativo digital – na prática, significa possuir as chaves privadas ou acesso à carteira digital que confere domínio sobre a criptomoeda. Esse controle decorre de eventos passados, como uma compra efetivada, uma troca ou mineração (recebimento como recompensa).
Outra característica do ativo intangível é que deve ser provável que ele gere benefícios econômicos futuros à entidade, o que, no caso das criptos, geralmente se traduz na expectativa de venda futura por dinheiro com ganho, ou na conversão em bens/serviços. Dado que muitas criptomoedas possuem mercado ativo e alta liquidez, presume-se razoável a expectativa de benefícios econômicos ao seu detentor. Ademais, seu custo ou valor justo de aquisição é normalmente mensurável com confiabilidade, pois há cotações de mercado disponíveis para as principais moedas digitais.
Atendidas essas condições de definição e reconhecimento (identificação, controle, benefícios futuros e mensuração confiável), a criptomoeda pode ser registrada como ativo intangível no balanço da entidade, e não como um ativo financeiro. A mensuração inicial se dá pelo seu custo de aquisição, o que inclui, no caso de compra, o preço pago mais taxas, impostos e outros custos diretamente associados à aquisição. Feito o registro inicial do intangível pelo seu custo de aquisição, o foco passa a ser as mensurações subsequentes desse ativo no balanço da entidade e os seus possíveis reflexos.
Para os instrumentos financeiros, como mencionado no começo deste artigo, o CPC 48 determina que eles sejam avaliados pelo valor justo (valor de mercado) tendo como contrapartida uma conta de patrimônio (outros resultados abrangentes, no VJORA) ou o resultado (no VJRE).
E o que deve ser feito para os ativos intangíveis? Após o reconhecimento inicial ao custo, o CPC 04 permite dois modelos de avaliação subsequente dos intangíveis: o método do custo e o método de reavaliação.
No modelo do custo, o ativo continua contabilizado pelo valor de custo inicial deduzido da amortização acumulada (se tiver vida útil definida) e de perdas por desvalorização acumuladas. O tema é tratado em um único item do CPC 04, que diz textualmente:
“74. Após o seu reconhecimento inicial, um ativo intangível deve ser apresentado ao custo, menos a eventual amortização acumulada e a perda acumulada (Pronunciamento Técnico CPC 01 – Redução ao Valor Recuperável de Ativos).”
Trazendo essa orientação para os criptoativos (ativos intangíveis), isso significa que a entidade pode registrá-los pelo seu respectivo custo de aquisição, não havendo necessidade de refletir o seu valor justo no resultado. Em outras palavras, o criptoativo (que é um ativo intangível e não um instrumento financeiro) fica registrado a custo, sendo que sua valorização não afeta o resultado da empresa até o momento em que seja vendido.
A única exceção para a modificação do custo diz respeito às perdas significativas, mas jamais às valorizações. É o que se depreende do próprio texto do item 74 do CPC 04 que fala apenas em “perda acumulada”.
O modelo de reavaliação (itens 75 a 87 do CPC 04) é permitido apenas se houver um mercado ativo para o ativo intangível em questão, sendo o ativo ajustado periodicamente ao seu valor justo de mercado na data do balanço. A reavaliação deve ser regular e suficiente para que o valor contábil não se distancie materialmente do valor justo atual.
É Importante destacar, no entanto, que embora o CPC 04 preveja esse método, a reavaliação de ativos foi revogada pela Lei nº 11.638/2007, não sendo admitida para propósitos estatutários desde 2008. A própria Receita Federal já se manifestou nesse sentido por meio da Solução de Consulta nº 19/2009, que diz:
Solução de Consulta Nº 19 de 09 de Março de 2009
Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ
Ementa: Reavaliação de Bens do Ativo Intangível após a Vigência da Lei 11.638/07
Impossibilidade: A partir de 1º de janeiro de 2008, data de vigência da Lei nº 11.638/2007, vedou-se às empresas a possibilidade de fazer, de forma espontânea, registros contábeis de reavaliação de ativos, face à extinção da conta “Reservas de Reavaliação”. AJUSTES DE AVALIAÇAO PATRIMONIAL. UTILIZAÇAO RESTRITA AOS CASOS PREVISTOS NA LEI Nº 6.404/1976 E ÀQUELES ESTABELECIDOS PELA CVM. A “Reserva de Reavaliação” não foi substituída pela conta de “Ajustes de Avaliação Patrimonial”, que tem natureza e finalidade distinta. Esta se destina a escriturar, exclusivamente, os valores decorrentes de avaliação de instrumentos financeiros, além dos casos estabelecidos pela CVM com base na competência que lhe foi atribuída pela Lei nº 11.638/2007 e Lei 11.941/2009. Aquela se destinava a escriturar as contrapartidas de valores atribuídos a quaisquer elementos do ativo em virtude de novas avaliações com base em laudo.
Dessa forma, somente resta às empresas registrar os seus ativos intangíveis pelo respectivo custo de aquisição, mantendo-se dessa forma até a sua alienação.
Mas mesmo que se pudesse admitir a utilização do método de reavaliação, registrando-se o ativo intangível pelo seu valor justo (de mercado), ainda assim a contrapartida não seria no resultado da empresa (no lucro), mas sim em conta patrimonial de ‘outros resultados abrangentes’, como no VJORA.
É isso que estabelece textualmente o item 85 do CPC 04:
“85. Se o valor contábil de ativo intangível aumentar em virtude de reavaliação, esse aumento deve ser creditado diretamente à conta própria de outros resultados abrangentes no patrimônio líquido. (…).”
O item 87 complementa essa determinação ao dizer que “o saldo acumulado relativo à reavaliação acumulada do ativo intangível incluída no patrimônio líquido somente pode ser transferido para lucros acumulados quando for realizada. O valor total pode ser realizado com a baixa ou a alienação do ativo.” Em outras palavras, a eventual valorização do ativo intangível somente ingressa no resultado da entidade quando for vendido.
Conclusão
De todo o exposto, resta claro que empresas offshore que detenham criptoativos não devem adotar o CPC 48 para a sua classificação e mensuração contábil, não sendo-lhes aplicável o VJORA ou VJRE para refletir a contrapartida da valorização desses ativos.
Criptoativos não são instrumentos financeiros, mas sim ativos intangíveis, e os padrões contábeis brasileiros aplicáveis são aqueles previstos no CPC 04. Como consequência, eles devem ser registrados pelo seu respectivo custo de aquisição, e assim mantidos até a alienação. As eventuais valorizações não devem afetar o resultado (lucro) da empresa até a sua efetiva alienação. Ainda que o seu valor justo (valor de mercado) possa ser refletido nas demonstrações financeiras, mesmo assim essa contrapartida deve ser refletida em outros resultados abrangentes, não afetando o lucro do exercício.
[1] Art. 5º, § 10, inciso II.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor de Tributação das aplicações financeiras, empresas offshore e trusts no exterior (2024), Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais (2023), do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.

