Casamento, divórcio e dívidas: quando o amor termina, mas as dívidas não…

Por Isabella Silveira

A responsabilidade solidária entre cônjuges em relação às obrigações financeiras oriundas da vida em comum é um tema recorrente no âmbito do direito de família e das execuções judiciais. Os seus impactos, no entanto, nem sempre são bem compreendidos pelas pessoas, o que pode trazer consequências patrimoniais inesperadas e indesejadas ao casal e à toda a família.

Nos últimos anos, decisões do Poder Judiciário têm consolidado o entendimento de que ambos os cônjuges podem ser responsabilizados pelas dívidas contraídas por apenas um deles, especialmente quando se referem a despesas voltadas à manutenção da convivência familiar, como gastos com educação, saúde e moradia.

Essa situação ocorre mesmo quando os cônjuges ou companheiros mantêm sua união sob o regime da separação de bens, quando a regra é a da incomunicabilidade de bens e de obrigações. Ou seja, mesmo sob esse regime de absoluta separação de patrimônios, há uma exceção que faz os cônjuges solidariamente responsáveis por dívidas, mesmo que contraída somente por um deles.

A base legal são os Arts. 1.643 e 1.644 do Código Civil, que dispõem que os cônjuges e companheiros podem, independentemente de autorização mútua, comprar a crédito e obter empréstimos necessários à economia doméstica e que as dívidas dessa natureza obrigam solidariamente ambos os cônjuges

Art. 1.643. Podem os cônjuges, independentemente de autorização um do outro:

I – comprar, ainda a crédito, as coisas necessárias à economia doméstica;

II – obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir.

Art. 1.644. As dívidas contraídas para os fins do artigo antecedente obrigam solidariamente ambos os cônjuges.

Por serem regras gerais, elas se aplicam a qualquer regime bens, não podendo ser afastadas por meio de pacto antenupcial.

Em um caso inusitado, o Tribunal de Justiça de São Paulo estendeu a aplicação desses dispositivos em uma situação em que não mais existia o vínculo matrimonial. Vale transcrever a decisão:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EDUCACIONAIS. AÇÃO MONITÓRIA EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. Interposição contra decisões interlocutórias que indeferiram a inclusão do cônjuge da executada no polo passivo da execução, a penhora de criptomoedas e a expedição de ofício para fintechs. Conquanto apenas a mãe tenha contratado os serviços e figurado no título, ambos os genitores exercem igualmente o poder familiar e são solidários em relação às dívidas domésticas contraídas ainda que por apenas um deles e independentemente da dissolução matrimonial. Exegese do artigo 229, da Constituição Federal c.c. artigos 1.643, I, e 1644, do Código Civil e artigos 21 e 22, do ECA. Legitimidade extraordinária do coobrigado que autoriza sua inclusão na lide, conforme determina o art. 790, IV, do CPC. Precedentes do STJ e deste Tribunal de Justiça. Inclusão dos genitores no polo passivo da demanda que é devida. Expedição de ofício às fintechs. (…)[1]

A decisão do TJSP é relevante, pois adota o entendimento de que os pais, especialmente aqueles que exercem o poder familiar, possuem responsabilidade solidária pelas obrigações financeiras relacionadas à manutenção e educação dos filhos.

O caso é especialmente relevante dado que o casal já se encontrava divorciado, sendo que apenas a mãe havia contratado a dívida escolar do filho comum. Neste caso, ainda que não houvesse comunicação de patrimônio dada o fim do matrimônio, o TJSP reconheceu a solidariedade pela dívida por força do poder familiar que cabe aos pais.

Ainda que apenas um dos genitores tenha contratado o serviço ou figurado como responsável no documento original, ambos acabaram sendo incluídos na ação de execução, considerando-se o dever de sustento e educação previsto no Art. 22 do Código Civil e Art. 229 da Constituição Federal.

Com essa abordagem extra legis, o tribunal pretendeu assegurar a efetividade da cobrança de dívidas necessárias ao bem-estar da criança ou adolescente, reconhecendo a responsabilidade de ambos os pais, independentemente da dissolução do casamento.

A decisão é um alerta aos pais separados e é recomendável que decisões financeiras sobre os filhos sejam devidamente reguladas no documento de divórcio ou união estável, especialmente para estabelecer que decisões financeiras relevantes relacionadas com os filhos sejam devidamente acordadas entre as partes.

Em situações extremas, o casamento acaba, mas as dívidas podem continuar chegando…


[1] TJSP – AI: 21870451620238260000, julgamento em 28/09/2023.

Isabella Silveira é graduanda em Direito pela Universidade Mackenzie e integrante do departamento de wealth planning & tax do BLS Advogados em São Paulo.

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