A pessoa jurídica é uma importante organização, reconhecida por lei para o exercício da atividade empresarial, com capacidade de adquirir direitos e obrigações, independentemente das pessoas que a compõem. O seu uso para fins legítimos é inquestionável. No entanto, quando utilizada para fraudar a partilha de bens conjugais, a prestação alimentar e a sucessão legítima, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica pode servir como ferramenta para acesso ao patrimônio ou renda sonegados.
A análise da aplicação da teoria da desconsideração em face das sociedades empresárias brasileiras delimita-se às sociedades de responsabilidade limitada, nas quais o sócio, em regra, não responde subsidiariamente com o seu patrimônio pelas obrigações da sociedade, desde que o capital social esteja integralizado e nas hipóteses em que não é possível responsabilizar o sócio ou o acionista por atos da sociedade.
Em razão do princípio da autonomia patrimonial, o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com o das pessoas físicas que a integram, separação que decorre de sua própria personalidade jurídica. Pela proteção patrimonial que oferece, a pessoa jurídica pode ser utilizada por seu sócio para o cometimento de fraudes e abusos, inclusive aqueles associados ao direito de família e das sucessões. A fim de coibir abusos e desvios de finalidade, emergiu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica
No Brasil, essa teoria passou a ser recepcionada pela doutrina ainda nos anos 1960 e evoluiu com o tempo. A desconsideração não surgiu para ser um instrumento contra a pessoa jurídica, mas sim como um instrumento que busca cercear fraudes e abusos; assim, além de proteger a própria pessoa jurídica dos atos desviantes de seus sócios, ela também visa proteger as pessoas físicas que são colocadas em posições de vulnerabilidade, decorrentes desses atos lesivos praticados por intermédio da pessoa jurídica.
A desconsideração da personalidade jurídica foi incorporada ao Código Civil de 2002, cujo art. 50 passou a conceituar e explicitar os critérios objetivos para incidência da desconsideração nas relações civis.
A personalidade apenas pode ser desconsiderada quando ocorrer a comprovação de fraude ou abuso de direito, em que é permitido ao juiz ignorar a autonomia patrimonial da empresa para coibir fraudes e abusos praticados por seu intermédio; porém, essa intervenção no patrimônio apenas deverá ocorrer quando houver prova cabal da ocorrência de fraude.
A jurisprudência e a doutrina passaram a reconhecer a aplicação da chamada Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica, que se traduz no alcance do patrimônio da sociedade, para responsabilizá-la pelo cumprimento de obrigação que originalmente é de titularidade de seu sócio. A primeira aplicação do instituto se deu em 2008 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (Agravo de Instrumento 1.198.103-0/0), quando a pessoa natural do sócio da empresa foi desonerada para atingir o patrimônio da pessoa jurídica, em razão da presença dos requisitos previstos no art. 50 do Código Civil.
Também houve a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica em importante julgamento do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial 1.236.916) que, em ação de dissolução de união estável, ponderou-se que a desconsideração deve ser aplicada para coibir manobras arquitetadas para fraudar a partilha. Vale transcrever trecho da ementa:
AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA. COMPANHEIRO LESADO PELA CONDUTA DO SÓCIO. ARTIGO ANALISADO: 50 DO CC/02. (…) 2. Discute-se se a regra contida no art. 50 do CC/02 autoriza a desconsideração inversa da personalidade jurídica e se o sócio da sociedade empresária pode requerer a desconsideração da personalidade jurídica desta. 3. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador. 4. É possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica sempre que o cônjuge ou companheiro empresário valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, a fim de subtrair do outro cônjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva. (…) 6. Se as instâncias ordinárias concluem pela existência de manobras arquitetadas para fraudar a partilha, a legitimidade para requerer a desconsideração só pode ser daquele que foi lesado por essas manobras, ou seja, do outro cônjuge ou companheiro, sendo irrelevante o fato deste ser sócio da empresa.
São três as áreas do direito de família e sucessões nas quais tem sido verificado um número cada vez maior de hipóteses concretas que exigem a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica: na partilha de bens realizada por ocasião de divórcio ou dissolução de união estável; na execução de alimentos; e no direito sucessório, principalmente na sucessão legítima. A criatividade das manobras societárias realizadas para fraudar cônjuge e herdeiros é variada.
Em caso analisado pelo STJ (Recurso Especial 1243409), o ex-companheiro realizara a transmissão fraudulenta para terceiros de quotas sociais para esvaziar o patrimônio e sonegar bens da meação, mantendo-se, contudo, no controle das empresas. A Corte entendeu ser possível a desconsideração da personalidade jurídica quando o cônjuge ou o companheiro valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, para subtrair direitos oriundos da sociedade afetiva do outro cônjuge.
Outra engenhosidade comumente vista do mau uso da pessoa jurídica para desvio de bens comunicáveis, passível da desconsideração, é a utilização de empresas estrangeiras (offshore), que se torna proprietária de bens que na verdade pertencem aos cônjuges.
Outro exemplo de uso impróprio da personalidade jurídica ocorre quando o cônjuge, conhecendo a futura ruptura dos laços afetivos que ensejará na abertura do divórcio com partilha dos bens conjugais, promova a gradual desativação operacional da empresa, retirando patrimônio da empresa, e transferindo sua operação para outra empresa, em que terceiro figura como sócio aparente.
Também âmbito das pensões alimentícias são frequentes os atos de dissimulação pela via societária para omitir verdadeira capacidade econômica e financeira do devedor dos alimentos. O mecanismo da desconsideração vem sendo reconhecido pela jurisprudência como instrumento eficaz de alcance do crédito alimentar aplicável aos casos de fraude, em que o devedor procura desvencilhar-se de sua obrigação, utilizando manobras que simulam sua insolvência alimentar.
Situações comumente vistas são aquelas nas quais o alimentante, sócio de alguma empresa, vale-se desse fato e age às escondidas sob o véu societário, mantendo uma vida e atividade notoriamente de quem detém boa capacidade financeira, contraditoriamente ao seu estado de quase miserabilidade que consta em seu pró-labore da sociedade empresária. Mais do que isso, alguns sócios fazem a sua retirada fictícia do quadro social da empresa e seguem atuando na sociedade na falsa condição de preposto.
A desconsideração da pessoa jurídica é vista como um eficiente instrumento de solução do litígio alimentar nas ocasiões em que o ex-cônjuge, ex-companheiro e pai esquiva-se em prestar alimentos aos seus dependentes, alegando possuir baixos rendimentos, enquanto exterioriza publicamente e com regularidade um bom padrão de vida social, por vezes até luxuoso, diferenciando-se de sua postura processual.
A jurisprudência não tem se furtado no uso da desconsideração em casos alimentares. Em um interessante julgado de 2009, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul admitiu a desconsideração em ação de execução de alimentos em favor da ex-companheira, ao ficar comprovado que o ex-companheiro transferira aos filhos quase todo o patrimônio comum, representado por cotas de sociedades, reduzindo-o à quase insolvência, pois recebia pouco mais de R$ 1.000,00 mensais do INSS.
No Direito das Sucessões, a sociedade empresária pode ser indevidamente utilizada para preterir direitos patrimoniais de sucessores legais. A fraude ocorre sob o montante hereditário relativo à legítima, que, em regra, corresponde à metade da herança líquida, a qual é de direito dos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge, conforme o caso).
Nas situações em que o autor da herança recorre a meios fraudulentos para subtrair bens de seu patrimônio, em prejuízo de um ou mais herdeiros necessários, os negócios societários utilizados, mesmo com aparência de legalidade, violam as regras da legítima e podem ser desconsiderados. Em alguns casos, a desconsideração da personalidade jurídica é o único remédio eficaz para fazer valer a lei.
Não são raros os casos em que os fraudadores da legítima valem-se da simulação em que o negócio jurídico encobre outro completamente diferente, ou então quando contém datas ou cláusulas que não correspondem com a verdade, ou ainda quando transmitem direitos a interpostas pessoas, como ocorre comumente no uso de sociedade para simular venda de quotas sociais, quando, na realidade, ocultam uma doação.
Exemplo comum é o do pai que constitui sociedade com dois de seus três filhos, mas que os aportes reais do patrimônio da sociedade são feitos apenas pelo pai, que consiste na maioria ou na totalidade de seus bens pessoais. Com o falecimento do pai, todos os filhos herdarão sua cota, inclusive o filho excluído da sociedade; todavia, este se tornará sócio minoritário, uma vez que seus irmãos já compõem o grupo majoritário da empresa.
Nesse tipo de situação, em que a pessoa jurídica é utilizada fraudulentamente para diminuir ou eliminar a legítima de herdeiro necessário, o herdeiro preterido poderá buscar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, para que os bens omitidos sejam considerados como parte da legítima e divididos entre os herdeiros necessários.
Seja qual for a seara jurídica, direito de família ou de sucessões, as fraudes perpetradas por meio da utilização de pessoa jurídica podem ser coibidas se forem bem aplicadas as regras vigentes da desconsideração da personalidade jurídica, fazendo com que sejam resguardados e restaurados os direitos daqueles preteridos na fraude.
Dandara Marques Piani é advogada graduada pela Fundação Armando Álvares Penteado, especialista em Direito de Família e Sucessões pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em Planejamento Patrimonial e Sucessório na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP)
NOVIDADE NO CATÁLOGO DA EDITORA B18: FAMÍLIA – PERGUNTAS E RESPOSTAS.