Por Rafael Zandonadi
O presente artigo busca esclarecer a imunidade tributária prevista no art. 156, §2º, I da CF/88 pós julgamento do STF sobre o Tema 796, esmiuçando o que foi decidido, o atual entendimento do judiciário e como as prefeituras vêm enfrentando a matéria.
O aumento das discussões sobre planejamento patrimonial e sucessório gerou também questionamentos sobre as possíveis vantagens e custos de um projeto. Dentre as questões analisadas, chama atenção o entendimento sobre a tributação (ou não) do ITBI na integralização de capital.
A imunidade tributária do ITBI está prevista no art. 156, §2º, inciso I da Constituição, a qual será concedida nas seguintes hipóteses:
Art. 156, §2º, inciso I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;
Traduzindo o artigo, seria imune o ITBI para:
- Integralização de capital;
- Transmissão de bens para fusão, incorporação, cisão;
- Extinção de pessoa jurídica;
A norma traz uma exceção para as atividades preponderantemente imobiliárias. Ou seja, as pessoas jurídicas que exerçam essa atividade imobiliária, de forma preponderante, não estariam abarcadas pela imunidade.
A “atividade preponderante” a que se refere o artigo, é medida pela receita. Se mais de 50% da receita for oriunda de atividade imobiliária, a integralização realizada não preencheria os requisitos para a imunidade.
Logo, caso a atividade operacional da empresa não atinja 50% de receita proveniente de atividade imobiliária, é possível conseguir a imunidade tributária do art. 156.
É preciso levar em consideração que existe um prazo para avaliar a preponderância:
- Caso a integralização seja feita em empresa que já esteja em atividade, a incorporação de atividade imobiliária mede pelos 2 anos antes e os 2 seguintes à incorporação do imóvel;
- Em se tratando de empresa “nova”: 3 anos posteriores à integralização.
Em razão do aumento repentino de projetos de planejamento patrimonial e sucessório, as prefeituras começaram notar perca de arrecadação e, a fim de frear as estratégias dos contribuintes, passaram a negar a imunidade, utilizando como fundamento o julgado pelo STF no Tema 796.
Ocorre que, o tema 796 (que discute a imunidade do ITBI) surge num contexto completamente diverso das situações que envolvem planejamento sucessório.
De forma resumida, o caso em análise tinha uma situação em que o contribuinte integralizou parcialmente os imóveis e, portanto, se discutia a possibilidade de tributação do ITBI sobre integralização destinada a reserva de capital.
Por exemplo: de um capital de R$ 100 mil, foi destinado R$ 20 para capital social e R$ 80 para reserva, ficando a discussão sobre a possibilidade de tributação sobre os R$ 80 mil.
Isso está correto. Não existe imunidade para a reserva de capital e esse não é o caso das empresas que tem sido constituída para esse fim, eis que buscam integralizar por completo no capital social da empresa.
Surge o problema e a grande necessidade de judicialização quando as prefeituras começaram a distorcer o julgamento para falar que o STF julgou que o capital integralizado seria isento e a diferença entre o valor integralizado e o valor real do imóvel, poderia ser tributada.
Esse não foi o julgamento.
Em seu voto, o Min. Alexandre de Moraes julgou pela legalidade da norma nos atos de incorporação de capital, de forma incondicionada. Ou seja, se o valor inteiro do imóvel (mesmo que seja o declarado no IR) é alocado para capital social, é direito a imunidade do ITBI, independente da diferença de valor declarado e mercado.
Só haverá a tributação de ITBI quando formar reserva de capital. Isso quer dizer que o contribuinte tem que alocar esse recurso em conta reserva. Se não ocorrer, a imunidade é devida.
Ainda, a forma como o voto foi proferido, deixa subentendido que o texto “salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil” se refere às transmissões de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão.
Abriu-se a possibilidade de uma nova discussão, que tem fundamentado liminares ao redor do país, sustentando que a imunidade é devida mesmo que a empresa exerça atividade imobiliária.
A título de exemplo, cita-se decisão do TJGO, que discorre perfeitamente sobre todas as vertentes da imunidade analisada pelo Tema 796, a fim de declarar o direito do contribuinte:
“Infere-se que a imunidade prevista na norma constitucional não se aplica a qualquer incorporação de bens ou direitos no patrimônio da pessoa jurídica. Ela se refere, especificamente, ao pagamento em bens ou direitos feito pelo sócio para a integralização do capital social subscrito, seja no início da constituição da pessoa jurídica ou em momentos posteriores, como durante um aumento de capital. Ademais, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I.
Há que se destacar que a finalidade da imunidade constitucionalmente prevista é a mobilização de bens imóveis para o desenvolvimento da atividade empresarial. Assim, o reconhecimento do direito à imunidade constitucional deve ocorrer na exata medida do objetivo que o constituinte teve em mente ao ria-lo, ou seja, o favorecimento do aumento da atividade econômica e os seus inerentes benefícios para a sociedade em geral.
Diante desse quadro, e, no intuito de esclarecer o alcance da imunidade em questão, o Supremo Tribunal Federal, em regime de Repercussão Geral no RE n. 796.376/SC – Tema 796, sob voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes, entendeu que a operação de integralização de capital constada na primeira parte do inciso I do §2º do art. 156 da CF/88, possui imunidade incondicionada, não estando sujeita à verificação da ressalva se a atividade operacional preponderante da empresa será ou não formada, em sua maioria, de receita proveniente de atividades imobiliárias. Nesse caso, a imunidade atinge toda a operação até o valor do capital social subscrito integralizado pelos sócios com os bens imóveis transferidos à pessoa jurídica. […]
Ademais, na segunda parte do inciso descrito, apenas quanto às operações de transmissão de bens decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção da pessoa jurídica, revela-se “uma imunidade condicionada a não exploração, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imóveis, de locação de imóveis ou de arrendamento mercantil”. […]
No entanto, devido a uma interpretação equivocada do julgamento proferido pelo STF, muitos municípios começaram a exigir o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) de maneira inadequada. Isso ocorreu porque a expressão “exceder o limite do capital social a ser integralizado” foi erroneamente interpretada como a diferença entre o valor do bem declarado pelo contribuinte a ser integralizado, e o valor de mercado avaliado pelo município quando da integralização do capital social.
Não se desconhece, a propósito, que tal interpretação tem encontrado guarida em diversos Tribunais pelo país, partindo da premissa de que o valor a ser considerado, na hipótese, é o valor real do bem, devidamente apurado em processo administrativo próprio (CTN, art. 148), e não aquele livremente indicado pela parte interessada em sua declaração de bens, aplicando-se a literalidade do artigo 38 do Código Tributário Nacional[1].
Ocorre que, esta interpretação, além de violar frontalmente a imunidade constitucionalmente prevista, e, inclusive, o próprio julgamento proferido pelo STF, que destacou que “a legislação tributária permite explicitamente a transferência do imóvel pelo valor de custo/declarado”, viola também o disposto no artigo 23 da Lei Federal n.º 9.249/1995[2], que permite a transferência do imóvel pelo valor declarado no imposto de renda ou pelo valor de mercado, in verbis: […]
Note-se que, quando da integralização do capital social por meio da transferência de bem imóvel, pode o contribuinte fazê-lo pelo exato valor constante de declaração do IRPF ou pelo valor de mercado, ou seja, é uma faculdade da parte deliberar por um ou por outro. Destaca-se que, em momento algum, o julgado do STF permitiu aos municípios a cobrança de ITBI sobre a diferença entre o valor declarado pelo contribuinte e o valor avaliado pelo município. Tal questão sequer fora objeto de análise e de debates no julgamento.
O caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal trata, justamente, de incorporação de imóveis que não foram destinados à integralização, por superarem, na declaração feita pelo contribuinte, o valor do próprio capital, com designação de lançamento na “conta ágio”, ou seja, para fins da análise do caso concreto, como uma espécie de reserva de capital. Ainda, naquele caso concreto, o valor considerado pelo fisco para fins de tributação do ITBI, e sobre o qual o STF decidiu, foi o declarado pelo contribuinte. O julgamento foi claro no sentido de que “O que não se admite é que, a pretexto de criar-se uma reserva de capital, pretenda-se imunizar o valor dos imóveis excedente às quotas subscritas, ao arrepio da norma constitucional e em prejuízo ao Fisco municipal.” Portanto, a limitação se dá com relação, apenas, ao que exceder o limite do capital integralizado, sendo que o STF, na ocasião, não decidiu que o valor dos bens integralizados deveriam ser os de mercado, mesmo porque a matéria é definida por lei não submetida à análise de constitucionalidade naquele julgamento (art. 23 da Lei 9.249/95), estando plenamente vigente no mundo jurídico.
[…] Ante o exposto, defiro a liminar requerida para autorizar a transferência à impetrante dos imóveis descritos na inicial, em integralização do capital social, determinando à autoridade coatora que se abstenha de exigir o ITBI na operação de incorporação de bens imóveis (Docs. 03 ao 10) […] para realização de capital social, bem como de efetuar quaisquer restrições, autuações fiscais, negativas de expedição de Certidão Negativa de Débitos, imposições de penalidades, ou, ainda, inscrição no CADIN que tenham relação com o ITBI destes imóveis, até a decisão definitiva do presente writ.” (TJGO – Processo nº 5403237-67.2024.8.09.0051 – Juiza: Raquel Rocha Lemos. Data: 23/05/2024)
Desta forma, podemos concluir que a imunidade Constitucional e o julgamento do STF reconhecem que não há a incidência de ITBI para as hipóteses de integralização de capital, havendo ressalva para as hipóteses de fusão, cisão e incorporação quando inexista atividade imobiliária ou quando esta seja inferior a 50% da receita.
Há de se ressaltar ainda que, para os demais casos e a depender da localidade da empresa, é preciso avaliar com atenção, sabendo que existem fundamentos e julgados, favoráveis à imunidade.
[1] Art. 38 – Art. 38. A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos. m
[2] Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.
Rafael Zandonadi é advogado graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com pós- graduado em Direito tributário e atuante nas áreas de direito tributário, empresarial, e estruturação de planejamento patrimonial e sucessório.