Lei nº 14.754/2023, lucro de offshore de 2023 e aproveitamento do IR pago no exterior

Por David Roberto R. Soares da Silva

A Lei nº 14.754/2023 estabeleceu a tributação automática dos lucros das entidades controladas no exterior apurados a partir de 1º de janeiro de 2024, mantendo a tributação na efetiva distribuição para os lucros gerados até 31 de dezembro de 2023. 2025 é o primeiro ano de aplicação dessas novas regras, não sendo incomum aparecerem questões práticas não expressamente previstas na lei, exigindo sua interpretação criterioso.

Imagine a seguinte situação: Tomás possui uma entidade controlada (Tomás Inc.) no exterior sob o regime de tributação automática, cujas demonstrações financeiras apresentam lucro em 31 de dezembro de 2023, mas prejuízo em 2024. Não obstante o prejuízo em 2024, a entidade controlada sofreu retenção de imposto de renda sobre certos rendimentos recebidos como, por exemplo, dividendos pagos por empresas americanas ou juros pagos por emissoras de bonds sediadas na Suíça.

Para dar mais objetividade, digamos que a Tomás Inc. apurou $ 500 mil de lucro em 2023, $ 150 mil de prejuízo em 2024, e sofreu retenção de $ 20 mil sobre rendimentos recebidos durante o ano de 2024. Durante o ano de 2024, a Tomás Inc. resolve distribuir $ 100 mil do lucro de 2023. Para fins ilustrativos, desconsideraremos conversão de moeda, usando apenas o símbolo “$”.

A questão que se coloca aqui é a seguinte: poderia Tomás utilizar o IR pago no exterior pela Tomás Inc. em 2024 para compensar o IR de 15% devido na Declaração de Ajuste Anual 2025 sobre o lucro de 2023 que foi distribuído em 2024?

Simplificando:

À primeira vista, a resposta a essa indagação pareceria ser negativa, dado que teríamos um imposto pago (exterior) em momento posterior (2024) sendo utilizado para abater o IR devido sobre um lucro gerado antes do pagamento desse imposto (em 2023). Mas será isso mesmo?

De início, vale dizer que a Lei nº 14.754/2023 não regula expressamente essa situação, exigindo uma análise sistemática para a sua correta aplicação. Passemos a ela.

Corretamente, a Lei nº 14.754/2023 estabelece que os lucros apurados até 31/12/2023 devem seguir a sistemática tributária anterior, qual seja, de tributação somente quando da sua efetiva disponibilização ao contribuinte. A alíquota aplicável, no entanto, é aquela prevista no Art. 2º da lei, ou seja, 15% (e não mais a tabela progressiva – Carnê-Leão – de zero a 27,5%). Diz o Art. 6º da lei:

Art. 6º Serão tributados no momento da efetiva disponibilização para a pessoa física residente no País, na forma prevista no art. 2º desta Lei:

I – os lucros apurados até 31 de dezembro de 2023 pelas controladas no exterior de pessoas físicas residentes no País, enquadradas ou não nas hipóteses previstas no § 5º do art. 5º desta Lei;

(…)

Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, os lucros serão considerados efetivamente disponibilizados para a pessoa física residente no País:

I – no pagamento, no crédito, na entrega, no emprego ou na remessa dos lucros, o que ocorrer primeiro; ou

II – em quaisquer operações de crédito realizadas com a pessoa física ou com pessoa a ela vinculada, conforme o disposto no § 3º do art. 5º desta Lei, se a credora possuir lucros ou reservas de lucros.”

Sobre o aproveitamento do IR pago no exterior para fins de dedução do IRPF devido pelo contribuinte sobre os lucros das entidades controladas, a questão é regulada pelo § 15 do Art. 5º da mesma Lei nº 14.754/2023, que estabelece uma série de condições, que veremos logo adiante.

Ao analisarmos a redação do Art. 6º, podemos dizer que o lucro “apurado” em 31/12/2023 passa a ser um lucro “tributável” no ano da sua distribuição. No caso de Tomás, o lucro de 2023 distribuído em 2024 deve ser informado na sua Declaração de Ajuste Anual 2025 (DAA 2025), mais precisamente na ficha Bens e Direitos, no novo campo de “Lucros e Dividendos”, como mostra a imagem:

Assim, podemos dizer que, embora gerado em 2023, o fato gerador do IR sobre esse lucro ocorre somente na sua efetiva distribuição (2024), devendo ser reportado e tributado na DAA 2025, tal como qualquer outro lucro de entidade controlada que tivesse sido apurado em 31/12/2024 e estivesse na sistemática da tributação automática.

Em outras palavras, o lucro gerado em 2023 e distribuído em 2024, irá gerar um IR devido na DAA 2025. Quanto a isso parece não existir qualquer dúvida.

Agora vejamos as condições criadas pela Lei nº 14.754/2023 para o aproveitamento de IR pago no exterior. Diz o § 15 do Art. 5º da lei:

Art. 5º Os lucros apurados pelas entidades controladas no exterior por pessoas físicas residentes no País, enquadradas nas hipóteses previstas neste artigo, serão tributados em 31 de dezembro de cada ano, na forma prevista no art. 2º desta Lei.

(…)

§ 15. Na determinação do imposto devido, a pessoa física poderá deduzir, na proporção de sua participação nos lucros da controlada, direta ou indireta, o imposto sobre a renda que:

I – seja devido no exterior pela controlada e pelas suas investidas não controladas;

II – incida sobre o lucro da controlada e das suas investidas não controladas ou sobre os rendimentos por elas apurados no exterior, quando tais lucros e rendimentos tenham sido computados no lucro da controlada tributado na forma prevista neste artigo;

III – tenha sido pago no país de domicílio da controlada ou em outro país no exterior;

IV – não supere o imposto devido no País sobre o lucro da entidade controlada que tenha sido computado na base de cálculo do IRPF; e

V – não se enquadre na vedação prevista no § 3º do art. 4º desta Lei.”

As condições da lei são bastante claras. O IR pago no exterior pode ser aproveitado se (1) for devido no exterior pela entidade controlada; (2) incida sobre lucros da entidade controlada ou sobre rendimentos por ela apurados no exterior; (3) tenha sido pago no exterior; (4) não supere o IR devido no Brasil sobre o lucro computado na base de cálculo; e (5) não seja passível de reembolso, de restituição, de ressarcimento ou de compensação, sob qualquer forma, no exterior.

Essas são as únicas condições estabelecidas pela lei.

Ora, apliquemos essas condições ao caso concreto de Tomás, em que houve lucro de 2023 parcialmente distribuído em 2024 e pagamento de IR pela Tomás Inc. sobre rendimentos por ela apurados em 2024, mas que mesmo assim resultaram em prejuízo ao final daquele ano. Vejamos:

Condição 1: O IR pago em 2024 era devido pela Tomás Inc.?

Resposta: Sim.

Condição 2: O IR incidiu sobre lucros da Tomás Inc. ou sobre rendimentos por ela apurados no exterior?

Resposta: Sim, o IR incidiu sobre rendimentos apurados em aplicações financeiras da Tomás Inc durante o ano de 2024.

Condição 3: O IR foi pago no domicílio da Tomás Inc. ou em outro país no exterior?

Resposta: Sim.

Condição 4: O imposto superou o IR devido sobre o lucro (de 2023) que foi distribuído em 2024?

Resposta: Sim. Nesse caso, o IR pago foi de $ 20.000, mas o IR devido era de $ 15.000. Assim, somente $ 15.000 de IR pago podem ser aproveitados.

Condição 5: O IR foi passível de reembolso, de restituição, de ressarcimento ou de compensação, sob qualquer forma, no exterior?

Resposta: Não.

Com essa análise é possível concluir que a Lei nº 14.754/2023 não proíbe que o IR pago pela Tomás Inc. em 2024 sobre aplicações financeiras no exterior (e que compuseram o prejuízo daquele ano) seja utilizado para deduzir o IR devido por Tomás sobre o lucro de 2023 que foi distribuído em 2024.

Não há nada na lei que proíba essa utilização, até porque, para fins da própria Lei nº 14.754/2023, o lucro (de 2023) distribuído em 2024, é tributado em 2024 (DAA 2025), coincidindo com o mesmo ano do pagamento do imposto de $ 20.000 pela Tomás Inc.

Em outras palavras, não estamos diante de utilizar um IR de ano posterior contra lucro de ano anterior, mas sim de utilizar o IR de um ano contra um lucro que é tributado naquele mesmo ano, não existindo outras restrições de aproveitamento que não aquelas descritas acima.

Assim, nada impediria Tomás de adicionar ao campo “Imposto Pago Exterior/IRRF Brasil” o valor de $ 20.000 retido de aplicações financeiras da Tomás Inc. no ano de 2024, sendo representado da seguinte forma:

Nesse caso, somente $ 15.000 seriam passiveis de utilização, dado ser esse o limite do IR devido sobre o lucro de 2023 de $ 100.000 que foi distribuído em 2024.

Essas conclusões se baseiam na interpretação sistemática da Lei nº 14.754/2023 que segrega lucros pré ou pós 2024 apenas para fins de estabelecer o momento em que deve incidir o IRPF sobre lucros de controladas no exterior (se na distribuição ou automaticamente). Ambos os lucros, no entanto, têm a mesma natureza jurídica de “lucro de entidade controlada no exterior”, aplicando-se as mesmas regras de aproveitamento do imposto pago no exterior.

Assim, um lucro de 2023 distribuído em 2024 é tributado em 2024, sendo possível o aproveitamento, pelo contribuinte, do IR pago no exterior em 2024 pela entidade controlada, ainda que ao final do ano ela apure prejuízo. A Lei nº 14.754/2023 é clara ao permitir o aproveitamento do IR incidente no exterior sobre lucros da entidade controlada ou “sobre os rendimentos por elas apurados no exterior” (Art. 5º, § 15, inciso II da Lei nº 14.754/2023), inexistindo razão, no caso de Tomás, para ele não aproveitar o IR pago no exterior pela sua offshore em 2024 contra o lucro de 2023 que ele recebeu em 2024.

David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor de Tributação das aplicações financeiras, empresas offshore e trusts no exterior (2024), Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais (2023), do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.

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