No movimento “tradwives” quem é o herói e quem é o vilão?

Por Ana Luiza Naback

Bela, recatada e do lar ou senhora do próprio destino, a verdade é que nenhuma mulher está imune à violência de gênero. No entanto, algumas têm mais rotas de fuga do que outras e o conhecimento pode ser um dos principais instrumentos de defesa.

Tradwives é a denominação que tem sido dada para o movimento de influenciadoras digitais que possuem a visão de gênero conservadora de que o homem é o provedor da casa e, a mulher, aquela que cuida dos afazeres domésticos e dos filhos, abdicando da carreira ou sequer entrando no mercado de trabalho e, consequentemente, colocando-se em um papel de submissão que, a longo prazo, denota não ser apenas sob o ponto de vista financeiro.

Na contramão do movimento feminista, de libertação da mulher das amarras do passado, as tradwives vêm ganhando força com a viralização de vídeos no intuito de mostrar a rotina do dia a dia do cuidado do lar, beleza e supervalorização da subserviência, escondendo, na maioria – para não dizer na totalidade – das vezes a realidade por trás do ideal de perfeição que pregam.

Apesar da estereotipação mais recente desse estilo de vida das tradwives famosas, a situação de muitas mulheres nos lares brasileiros, por escolha ou imposição, passa muito longe do floreio e do glamour que se aparenta ter nas redes sociais. Não raras vezes, são vítimas constantes de violência doméstica em suas variadas facetas, graus e medidas.

A submissão costuma ter um preço caro a se pagar, principalmente a médio e longo prazo. Afinal, quantas mulheres sujeitam-se a repetidos episódios de violência porque têm a pré-disposição de achar que não existe um lugar para elas fora do relacionamento? Agrava-se ainda mais quando há situações de extrema dependência econômica e emocional perpetuada no tempo, tornando-as prisioneiras do medo.

 No entanto, independentemente do estilo de vida que se adota, o objetivo desse texto é trazer informação para que a escolha seja consciente ou, se não houver escolha, saiba-se que quando a situação apertar, há rotas de fuga.

Principal aliado: pacto antenupcial ou contrato de convivência

Para o início da relação e para quem adota o ditado do “combinado não sai caro”, a melhor forma de minimizar riscos é fazer um pacto antenupcial ou contrato de convivência muito bem elaborado, passando não só pela escolha do regime de bens, mas por disposições que deixem claro o acerto entre o casal de o homem prover o lar e a mulher dele cuidar, de como isso vai se dar na prática, se haverá ou não controle de gastos, o que acontece em caso de término da relação etc. Ambos os instrumentos, ou seja, tanto o pacto antenupcial para casamentos quanto o contrato de convivência para as uniões estáveis são aliados e tanto nessas horas.

É também por meio desses documentos que é feita a escolha de regime de bens ou adequação do regime à realidade do futuro casal. Todo regime de bens tem consequências e elas são distintas para hipóteses de separação em vida e viuvez.

Se vier a exigência ou se for uma opção que a relação seja regida pelo regime da separação de bens, é preciso saber negociar. Há quem pregue que ele é o verdadeiro vilão das tradwives, mas é imprudente colocar toda a culpa das consequências tão somente no regime eleito para reger a relação.

 É fato que as consequências da separação de bens em caso de divórcio ou dissolução de união estável é um dos piores cenários possíveis para as tradwives que não possuem patrimônio próprio. A depender de quanto tempo se distancia do mercado de trabalho em prol do lar e da extensão da dependência econômica da mulher em relação ao homem, sair de uma relação sem ao menos uma perspectiva de percepção de bens pode ser um fator determinante para que o fim seja evitado a todo custo (e, também, que sejam perpetuadas as situações de violência doméstica).

Nesse caso, outras possibilidades ganham protagonismo.

Os alimentos provisórios auxiliarão a mulher a retornar ao mercado de trabalho e os alimentos compensatórios atuarão como fator de reequilíbrio da situação financeira dos ex-cônjuges ou ex-companheiros, indenizando a mulher pelo tempo de dedicação à rotina doméstica. Se a relação ainda não foi formalizada, é preciso saber usar o pacto antenupcial ou o contrato de convivência a favor da mulher, tornando a situação equilibrada. Afinal, num bom acordo ambos cedem para que ambos também possam ganhar.

O pacto antenupcial ou contrato de convivência servirá também para disciplinar como será quando o casal tiver filhos. Um, dois, não importa a quantidade. As conversas e os ajustes que acontecem enquanto o enlace ainda é uma representação do amor que ambos vivem são valiosos, porque não haverá conversa tão amistosa assim quando o amor ceder lugar à mágoa, raiva, frustração ou decepção. Por meio desses instrumentos jurídicos, o casal tem liberdade de ao menos predispor sobre diversas situações envolvendo a repartição da responsabilidade na criação e manutenção dos filhos. Um exemplo é já deixar pré-definido que em caso de rompimento da relação e retorno da mulher ao mercado de trabalho, deverá ser contratada uma funcionária para auxiliar nas atividades domésticas e babás para viabilizar a saída da mulher de casa para trabalhar.

Não menos importante, é prudente que a mulher pugne por mecanismos que lhe garantam alguma liquidez caso o relacionamento desande. Ao ofertar a liberdade financeira e profissional em troca dos cuidados domésticos e do casamento, a conversa alinhada com o parceiro sobre qual a contrapartida poderá ser oferecida assume um papel determinante. Nessa situação, os planos de previdência privada não devem ser esquecidos. Afinal, por que não acordar que deverá haver a contratação de plano de previdência privada em nome da mulher, com os beneficiários por ela indicados, cabendo ao homem contribuir mensalmente conforme previamente estipulado entre o casal?

Tanto o pacto antenupcial quanto o contrato de convivência também comportam cláusulas de penalização de comportamentos que ferem os deveres e princípios do relacionamento. Um exemplo é a estipulação de penalidade para episódios de infidelidade ou estipulação prévia de indenização não compensatória para casos de violência doméstica.

Cuidado com os regimes de bens

A culpa não é só do regime de bens quando os problemas aparecem. Mas o peso dos problemas que eles podem causar não é algo que deva ser desconsiderado.

Como adiantado, para quem vai se submeter à posição conservadora da mulher gestora do lar e da família, ausente patrimônio prévio, o regime da separação é um fator de alerta. Nesses casos, é preciso ponderar e contornar a situação com os mecanismos exemplificativos que já foram apresentados nesse texto.

Por outro lado, se a mulher já tem o seu patrimônio, o cuidado deve ser redobrado nesse momento.

É prudente deixar o alerta ligado para o regime da comunhão universal de bens. Por esse regime, tudo o que a mulher tem antes do casamento ou união estável passa a ser partilhado com o parceiro, salvo aqueles que são gravados com cláusula de incomunicabilidade. O amor é lindo, mas não compensa ceder tudo em nome dele, valendo aqui o lembrete: “prevenir é melhor do que remediar”. Afinal, quando a mulher tem seu próprio patrimônio, ela também tem poder de decisão.

Em nome do amor – próprio –, pisar no freio e repensar ao menos cinco vezes se a mulher possuir algum negócio ou atividade empresária e cogitar passar a administração para aquele que for o eleito é um conselho precioso. O problema não é deixar o parceiro auxiliar na condução dos negócios, mas sim renunciar a tudo em nome da confiança. Se o preço por ceder a liberdade é alto, quão caro é o preço do arrependimento? Pois é.

Nesses casos, a estruturação da rotina dos negócios para o período em que a atenção for voltada ao lar é de grade valia. Contratos sociais e acordo de sócios consistentes e bem elaborados, assim como assessorias especializadas não devem ser abdicados. Além disso, nunca é demais lembrar, é fundamental a leitura de todos os documentos que forem postos para assinatura, principalmente as procurações.

Quando a mulher for proveniente de famílias empresárias, é de bom tom que as escolhas da vida sejam compartilhadas com os familiares dado o impacto que isso pode causar. Protocolos familiares, contratos sociais, acordo de sócios são fundamentais para que seja analisada a participação e gestão da parte da mulher nos negócios da família pelo seu parceiro de vida. Um bom planejamento patrimonial e sucessório dos ascendentes também fará toda a diferença. Em muitos casos, a opção da mulher em deixar-se reger pelo marido tem consequências que transbordam as quatro paredes.

Há rotas de fuga

Situações de dependência financeira geralmente não andam desacompanhadas. Muitas vezes caminham de mãos dadas com a dependência emocional, fazendo com que a mulher turve a vista para as abusividades cometidas dentro do relacionamento ou não consiga ponderar o que é pior: o que se vive dentro relação ou o mundo lá fora. Quanto mais dependente emocional e financeiramente do relacionamento, menos rota de fuga a mulher acha que tem. E, infelizmente, mais situações de violência doméstica, que não se limitam às vias físicas, são praticadas em seu detrimento.

Se essa é a situação, não é clichê ou “positividade tóxica” dizer que o mundo é bem melhor do lado de fora, por mais assustador que pareça ser. Para tanto, dois serão os heróis que protagonizarão essa história: o conhecimento e a coragem. Quanto mais conhecimento, mais coragem se tem.

Os exemplos de rotas de fuga levantados ao longo do texto não estão condicionados ao pacto antenupcial ou contrato de convivência. As medidas podem ser requeridas e tomadas mesmo por quem já se encontra em alguma relação formalizada.

Demais disso, desde março de 2023 a Resolução nº 492/23 do Conselho Nacional de Justiça tornou obrigatória a observância do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero pelos tribunais brasileiros em todas as suas instâncias e esferas.

O Protocolo visa assegurar a aplicação do direito com igualdade material entre homens e mulheres, notadamente nesses cenários em que a mulher assume um papel de subserviência em relação ao homem, sendo um plus na garantia e aplicação prática dos direitos dessas mulheres.

Tradwife ou senhora do próprio destino, não importa. Se o relacionamento se tornar abusivo, o herói é o conhecimento, que protegerá de alguma forma as suas escolhas ou convicções pessoais. O vilão é o medo de achar que não tem saída.  

Ana Luiza Naback é advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, , e associada do departamento de wealth planning  do BLS Advogados em Belo Horizonte/MG.

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