O desafio da longevidade nas empresas familiares

Por Leticia Reichert

No Brasil, cerca de 90% das empresas possuem perfil familiar, segundo dados do IBGE. Sua longevidade, no entanto, é um desafio: apenas de 3% a 4% dessas empresas sobrevivem à terceira geração. O que explica essa fragilidade?

Muitas vezes, a falta de estrutura, regras, alinhamento e clareza na comunicação, especialmente em momentos de transição entre gerações. Nesse contexto, a governança desponta como um importante aliado para garantir a continuidade do negócio, que ao mesmo tempo em que se transforma e se reinventa, também traz em sua essência os valores e a identidade da família empresária que o sustentaram em sua trajetória.

Ainda menos disseminada que a governança corporativa, a governança familiar costuma aparecer no contexto das famílias empresárias quando novas gerações passam a integrar a estrutura de propriedade e os negócios. Idealmente deve ser estruturada quando existe harmonia na família e a empresa está saudável, mas muitas vezes é buscada apenas quando já existem disfunções nas relações familiares, desavenças em relação à propriedade ou disputa por espaços de poder e protagonismo nos negócios.

Se, por um lado, a governança corporativa assegura a base para o crescimento sustentável da empresa, a governança familiar cuida das relações entre os membros da família empresária, preservando a harmonia, alinhando expectativas e definindo os contornos da interação entre família, empresa e propriedade.

A transição geracional é um dos pontos mais sensíveis para empresas familiares. À medida que o tempo passa, as famílias crescem, novos integrantes surgem, e nem todos naturalmente compartilharão do mesmo envolvimento ou visão do fundador. O neto pode não enxergar a empresa com a mesma paixão do avô, que, por sua vez, pode ter dúvidas sobre a quem passar o comando ou mesmo a propriedade. Esse processo natural de evolução não é um problema em si. O risco está em não haver mecanismos para conduzir essas transições de forma transparente e planejada.

A governança familiar entra justamente para estruturar essas questões, trazendo regras claras e instâncias formais de discussão, reflexão e decisão. É por meio dela que são estabelecidos critérios para a participação de familiares no negócio, definindo, por exemplo, requisitos de formação acadêmica e experiência de mercado para ocupação de cargos estratégicos. Também cabe à governança familiar determinar diretrizes sobre a sucessão, prevenindo conflitos e garantindo que o processo ocorra de forma transparente, planejada e alinhada aos interesses do negócio e da família.

Existem diferentes instrumentos e fóruns através dos quais a governança familiar pode ser praticada. Exemplo disso é o Protocolo Familiar, um importante documento que formaliza os valores, princípios e regras da família dentro e fora do contexto empresarial, garantindo que expectativas estejam alinhadas. O Conselho de Família é um espaço para trazer à família conhecimento acerca das estratégias e direção do negócio, fortalecer iniciativas para preservação dos laços familiares, planejar o desenvolvimento dos membros da nova geração e futuros acionistas, além de promover o senso de pertencimento dos integrantes da família empresária. É também o ambiente em que se buscam caminhos para solucionar conflitos e sanar ruídos de comunicação.

A implementação da governança familiar não segue uma receita pronta e tampouco acontece de forma automática. Exige comprometimento, abertura para o diálogo e disposição para lidar com desafios que vão muito além dos aspectos técnicos da gestão de negócios, visto que envolve questões emocionais e relacionais entre indivíduos com vínculo familiar. Além de promover a coesão familiar e sua saudável relação com os negócios, também se propõe a estabelecer um ambiente propício para que a empresa de controle familiar não apenas sobreviva às mudanças necessárias para se manter relevante no mercado, mas se fortaleça com elas, preservando sua essência sem abrir mão de se transformar e evoluir.

Na minha experiência como conselheira em empresas de controle familiar e membro da segunda geração de uma família empresária, vejo, na prática, o impacto positivo da governança na continuidade dos negócios. Com disciplina e intencionalidade, é possível manter viva a história das empresas familiares e presentes os seus valores, sem que o crescimento e a profissionalização comprometam os laços que as tornaram bem-sucedidas desde o início. Governança corporativa e familiar são complementares. E, quando bem integradas, são a chave para um futuro sustentável.

Leticia Reichert é advogada, atuando como Conselheira de Administração e Consultiva em empresas de capital aberto e de capital fechado, de variados portes, nos segmentos da indústria, varejo e serviços. É também coordenadora da Comissão de Empresas de Controle Familiar do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC.

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