O ITCMD sobre doações e sucessões com elementos no exterior

Por Isabella Magalhães

Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, a Reforma Tributária finalmente adentrou um dos territórios mais sensíveis e sofisticados do direito tributário brasileiro: a sucessão e a doação de bens em contextos internacionais. O impacto é direto e profundo, especialmente para famílias com patrimônio fora do Brasil ou estruturação sucessória internacionalizada.

A tributação das doações internacionais sempre foi um ponto sensível no ordenamento jurídico brasileiro, dada a ausência de previsão constitucional expressa sobre a possibilidade de os Estados instituírem o ITCMD em hipóteses com elementos de conexão ao exterior. Essa lacuna foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 851.108/SP (tema 825 da repercussão geral), que concluiu pela inconstitucionalidade da cobrança do imposto sem lei complementar que a regulamente.

A EC nº 132/2023 veio preencher essa lacuna ao incluir no texto constitucional a possibilidade expressa de tributação pelo ITCMD de doações e transmissões causa mortis com elementos estrangeiros, transferindo para a lei complementar a definição da competência e critérios de incidência.

A competência tributária para a instituição do ITCMD não foi outorgada de forma plena aos Estados e ao Distrito Federal pela Constituição de 1988. O artigo 155, §1º, inciso III, estabelece que, em determinadas situações, a competência para instituir o ITCMD deve ser regulada por lei complementar federal:

“§ 1º O imposto previsto no inciso I (ITCMD): III – terá competência para sua instituição regulada por lei complementar: a) se o doador tiver domicílio ou residência no exterior; b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior.”

A exigência de lei complementar se aplicada às seguintes situações:

  • Se o doador tivesse domicílio ou residência no exterior;
  • Se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior.

Apesar da previsão constitucional, mais de três décadas se passaram sem que o Congresso Nacional editasse a referida lei complementar. Em razão dessa omissão legislativa, diversos Estados – incluindo São Paulo – editaram normas próprias e passaram a exigir o ITCMD em hipóteses de doações internacionais. Essa prática foi questionada judicialmente, culminando no julgamento do RE 851.108/SP, no qual o STF fixou a seguinte tese de repercussão geral:

“É vedado aos Estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal, sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional.”

A fim de evitar impactos nas finanças dos Estados foram modulados os efeitos da decisão conferindo-lhe eficácia ex nunc, ou seja, a partir da data da publicação do Acórdão, em 20 de abril de 2021.

É importante atentar para o alcance da exigência de lei complementar estabelecida nas alíneas “a” e “b” do § 1º, inciso III, do Art. 155 da CF, para a perfeita compreensão da matéria:

III – terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:

a. se o doador tiver domicílio ou residência no exterior;

b. se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior

A alínea “a” faz referência ao doador com domicílio ou residência no exterior, e na alínea “b” do inciso III do §1º do art. 155 da CF faz referência ao de cujus (pessoa falecida), e não aos herdeiros. Portanto, a necessidade de lei complementar aplica-se exclusivamente às situações em que o doador ou o de cujus tenha domicílio ou residência no exterior, ou possua bens no exterior, ou tenha tido seu inventário processado no exterior.

A EC nº 132/2023 (Art. 16) introduziu um regime jurídico transitório, temporariamente autorizando os Estados e ao Distrito Federal instituírem o ITCMD nas hipóteses antes dependentes de lei complementar, até que esta venha a ser devidamente editada. Incluem-se, nesse permissivo, as seguintes situações: (i) doações realizadas por doadores domiciliados no exterior; (ii) transmissões causa mortis envolvendo bens localizados no estrangeiro; e (iii) sucessões cujo inventário seja processado fora do país.

O texto provisório regula a competência tributária para as matérias acima, mas não encerra totalmente o debate. Assim ficou a redação:

“Art. 16. Até que lei complementar regule o disposto no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal, o imposto incidente nas hipóteses de que trata o referido dispositivo competirá: I – relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal; II – se o doador tiver domicílio ou residência no exterior: a) ao Estado onde tiver domicílio o donatário ou ao Distrito Federal; b) se o donatário tiver domicílio ou residir no exterior, ao Estado em que se encontrar o bem ou ao Distrito Federal; III – relativamente aos bens do de cujus, ainda que situados no exterior, ao Estado onde era domiciliado, ou, se domiciliado ou residente no exterior, onde tiver domicílio o sucessor ou legatário, ou ao Distrito Federal.”

Portanto, temos que a EC 132/2023, em seu Art. 16 alterou a redação do Art. 155, §1º, III, da Constituição Federal, incluindo a nova alínea “d”, que dispõe:

Lei complementar definirá o Estado competente para instituir o imposto: d) nas doações e nas transmissões causa mortis de bens situados no exterior, de residente ou domiciliado no exterior, ou a herdeiro ou legatário residente ou domiciliado no exterior.

Essa nova redação possui três efeitos centrais:

  1. Reconhecimento explícito da possibilidade de tributação pelo ITCMD nas Doações Internacionais (doador INR), desde que haja lei complementar que discipline os critérios de competência;
  2. Ampliação das hipóteses de conexão internacional, ao incluir expressamente como fator de conexão o domicílio do donatário ou herdeiro no exterior;
  3. Consolidação da exigência de lei complementar como condição de validade para a instituição do imposto nas hipóteses transfronteiriços.

A nova redação constitucional traz implicações importantes para o planejamento patrimonial e sucessório, que devem ser analisadas a partir do seguinte cenário no Estado de São Paulo: O TJSP está dividido sobre a cobrança do ITCMD quando há conexão com o exterior quando o doador, o falecido ou os bens e direitos estão no exterior.

Algumas decisões dizem que o imposto não pode ser cobrado sem Lei Complementar. Outras que a cobrança já pode ser realizada. E como surgiu essa confusão?

O STF decidiu, no Tema 825, que: “Estados não podem cobrar ITCMD sobre heranças e doações internacionais sem uma lei complementar”.

Com base nisso, o STF declarou inconstitucional a Lei Paulista nº 10.705/00.

Contudo, em 2023 veio a EC 132 que criou uma regra transitória que autoriza cobrança enquanto não sobrevir Lei Complementar para os casos de doação, no qual o doador tenha domicílio no exterior e nos casos de sucessão, quando o de cujus possuía bens, era domiciliado ou teve inventário processado no exterior.

O impacto desta incerteza para os casos supracitados:

  1. Pagamento proativo do imposto indevido para os casos supracitados
  2. Tentativa de cobrança do Estado de São Paulo

Dilema: Melhor pagar ou vale recorrer em âmbito judicial?

O STF já decidiu caso semelhante mediante o Tema 110, em que:

“Se uma lei for declarada inconstitucional, ela não pode voltar a valer automaticamente – Princípio da Repristinação.”

Então, após a EC 132, o Estado de São Paulo pode continuar a aplicar sua lei ordinária para cobrar o ITCMD nas hipóteses do art. 155, § 1º, III?

Depende:

Mais uma decisão favorável ao contribuinte:

  • 7ª Câmara do TJ-SP decidiu que sem uma nova lei estadual, NÃO PODE haver cobrança de ITCMD. Adicionalmente, a Constituição Federal ainda exige Lei Complementar para regulamentar a cobrança.

Nesse sentido, caso a herança ou doação com conexão no exterior seja enquadrada nos critérios acima, estima-se que a cobrança de tributo seja reconhecida inconstitucional. Para tanto, é necessário ajuizar medida judicial para afastar necessidade de pagamento.

CASOS PRÁTICOS DE DOAÇÕES COM ELEMENTOS NO EXTERIOR

1. Doador residente no exterior, donatário residente no Brasil, bens situados no Brasil

Enquanto não editada a lei complementar já citada o TJSP tem mantido decisões que afastam a cobrança de ITCMD em doações realizadas por doadores não residente, quando os bens e donatários estão localizados no território nacional.

Em caso prático ocorrido em meados de 2024, uma matriarca decidiu viver na Itália e, pretendendo deixar resolvida a sucessão de imóveis, direitos creditórios e participação societária no Brasil para seus herdeiros, realizou doações em vida.

A sentença favorável foi proferida pela 8ª Vara da Fazenda Pública, na qual o juiz Luis Eduardo Medeiros Grisolia considerou o tema nº 852 do STF, que veda a cobrança de ITCMD por Estados nas hipóteses do artigo 155, §1º, III, da CF sem a intervenção de LC exigida pelo dispositivo constitucional.

2. Doador residente no exterior, donatário residente no Brasil, bem situado no exterior

No contexto das doações com bens situados no exterior, realizadas por doador residente no exterior para donatário residente no Brasil, a tributação do ITCMD sempre gerou discussões relevantes. Esse tipo de operação é bastante comum em famílias transnacionais, especialmente quando os bens doados estão fora do país.

Uma decisão recente do TJSP no processo nº 1047533-70.2023.8.26.0053 reforçou essa interpretação. O tribunal afastou a cobrança de ITCMD sobre doação de bens situados no exterior, por doador residente fora do Brasil, com base na ausência da lei complementar federal que regulasse a matéria.

Portanto, enquanto a EC 132/2023 abriu a possibilidade para a cobrança do ITCMD nas doações internacionais, a efetiva incidência do imposto pelos Estados ainda depende da criação da lei complementar que definirá as normas gerais de competência tributária, conforme a Constituição Federal.

3. Doador residente no Brasil, donatário residente no exterior, bem situado no Brasil

A doação de bem situado no Brasil, mesmo com donatário no exterior, foi tradicionalmente tributada sem controvérsia.  Neste cenário, a doação de bem situado no Brasil por doador residente no Brasil para donatário residente no exterior sempre esteve ao alcance da legislação estadual e sujeita à tributação pelo Estado onde o bem está localizado, independentemente do domicílio do donatário, por não haver conexão internacional nos termos do antigo artigo 155, §1º, III, da CF.

A Emenda Constitucional 132/2023, ao incluir o domicílio do donatário como fator de conexão, reforça a possibilidade de tributação pelo Estado do domicílio do donatário, desde que regulamentado por lei complementar federal.

4. Doador residente no Brasil, donatário residente no Brasil, bem situado no exterior

Ainda que o bem objeto da doação esteja situado no exterior, quando tanto o doador quanto o donatário residem no Brasil — é legítima a exigência do ITCMD. Isso porque a jurisprudência e a legislação estadual (como a Lei paulista nº 10.705/2000) conferem competência ao Estado para tributar com base no domicílio das partes envolvidas, mesmo que o bem não esteja localizado fisicamente no território nacional.

Nesse sentido, o TJSP já reconheceu a legitimidade da cobrança. No acórdão da 9ª Câmara de Direito Público (Apelação Cível nº 1004215-15.2020.8.26.0053), restou decidido que o ITCMD é exigível mesmo sobre doações de bens no exterior quando o doador e o donatário têm domicílio no Estado de São Paulo. O acórdão destacou que:

“A inexistência de lei complementar não impede a cobrança do imposto nas hipóteses em que a regra-matriz de incidência se esgota no território nacional, como na situação em que o doador e o donatário têm domicílio no Estado, ainda que os bens doados estejam no exterior.”

Portanto, a cobrança do ITCMD em doações com bens no exterior permanece plenamente válida e eficaz quando as partes envolvidas residem no Brasil, cabendo ao Estado do domicílio exercer sua competência tributária.

5. Doador e donatário no exterior, bem situado no Brasil

Esta é uma hipótese especialmente relevante na prática do planejamento patrimonial internacional, sobretudo em estruturas familiares com vínculos fora do país. Quando o bem objeto da doação está localizado no Brasil, ainda que tanto o doador quanto o donatário residam no exterior, incide o ITCMD conforme a legislação do Estado onde o bem está situado.

A Lei paulista nº 10.705/2000, por exemplo, prevê expressamente essa possibilidade. O artigo 4º, inciso I, estabelece que o imposto é devido quando o bem doado estiver situado no estado, independentemente do domicílio do doador ou do donatário. Neste caso, o critério de localização do bem é suficiente para legitimar a competência tributária estadual.

Esse entendimento também é respaldado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo. Em decisão da 14ª Câmara de Direito Público, no Agravo de Instrumento nº 2069844-47.2023.8.26.0000, o TJSP entendeu que:

“Ainda que a doação tenha ocorrido entre partes domiciliadas no exterior, a existência de imóvel situado no território paulista legitima a incidência do ITCMD, uma vez que a localização do bem constitui elemento de conexão suficiente para atrair a competência tributária estadual.”

Portanto, diferentemente das hipóteses que envolvem doador e/ou bens no exterior ou doador no exterior e donatários no Brasil (que dependem de regulamentação por lei complementar), a doação de bens situados em território nacional permite a incidência do imposto com base nas regras já estabelecidas pelas legislações estaduais, sem necessidade de edição de nova norma complementar.

O CASO SILVIO SANTOS

Um caso recente que trouxe visibilidade ao tema da sucessão internacional e sua tributação no Brasil: o das herdeiras do empresário e apresentador Silvio Santos.

O caso envolveu a abertura de inventário nos Estados Unidos — país onde o patriarca possui bens e estrutura jurídica — com transmissão causa mortis de ativos localizados no exterior às herdeiras residentes no Brasil. O Estado de São Paulo exigiu ITCMD sobre essas transmissões, mas a defesa das herdeiras amparou-se na tese fixada pelo STF no RE 851.108/SP, sustentando a impossibilidade de tributação na ausência de lei complementar disciplinando a competência em casos com elementos internacionais.

O caso exemplifica, na prática, os conflitos de competência e os riscos de dupla tributação enfrentados por famílias com estrutura patrimonial internacional, além de reforçar a atualidade e a urgência da regulamentação prevista na EC 132/2023. Ainda que se trate de transmissão causa mortis, e não de doação, o precedente ajuda a ilustrar como a ausência de regra clara, ainda que reconhecida pela jurisprudência, continua gerando disputas entre os fiscos estaduais e os contribuintes — situação que tende a se intensificar à medida que aumenta a internacionalização do patrimônio das famílias brasileiras. 

EXPECTATIVAS E RISCOS NA AUSÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR

Enquanto a lei complementar não for editada, permanece a vedação estabelecida pela jurisprudência do STF. Os Estados, contudo, podem ser tentados a reinterpretar a EC 132/2023 como autorização para instituírem normas próprias com base no novo texto constitucional — o que seria, a rigor, inconstitucional, à luz da exigência expressa de lei complementar.

Adicionalmente, contribuintes que atuam no planejamento patrimonial e sucessório internacional devem considerar os riscos de bitributação, especialmente em países com os quais o Brasil não mantém tratados bilaterais sobre o ITCMD.

A EC nº 132/23 representa um avanço em termos de sistematização e modernização do sistema tributário brasileiro, ao reconhecer a complexidade das transmissões patrimoniais com elementos internacionais. Contudo, sua eficácia está condicionada à edição da indispensável lei complementar que, além de definir os critérios de competência, deve mitigar conflitos federativos e oferecer segurança jurídica aos contribuintes.

Enquanto isso, o papel dos profissionais de planejamento patrimonial é acompanhar atentamente o processo legislativo e estruturar operações de doação internacional à luz da jurisprudência consolidada e da nova moldura constitucional.

Isabella Magalhães é advogada, mestre (LLM) em Direito dos Mercados Financeiro e de Capitais (Insper). Possui certificação CFP e pós-graduanda em Planejamento Patrimonial e Sucessório pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Atualmente, atua no segmento de Family office, integrando o time Jurídico e Compliance na Pragma Gestão de Patrimônio.

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