Projeto de Lei nº 04/2025 e a partilha da valorização de participações societárias

Por Carlos Borrelli

O art. 1.659, inciso I, do Código Civil dispõe que são excluídos da comunhão, no regime da comunhão parcial de bens, os bens que cada cônjuge ou convivente possuir ao casar-se, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar. Por sua vez, o inciso V, do art. 1.660 do mesmo Código prevê que os frutos dos bens comuns entram na comunhão[1].

Em 31 de janeiro de 2025, foi apresentado o Projeto de Lei nº 04/2025, de autoria do senador Rodrigo Pacheco, que dispõe sobre a atualização do Código Civil, promovendo várias mudanças importantes que certamente afetarão o patrimônio das pessoas.

Entre as alterações, destaca-se a inclusão dos incisos VIII e IX, ao art. 1.660, que propõe a inclusão, na comunhão, dos seguintes bens:

(i) a valorização das quotas ou participações societárias ocorrida na constância do casamento ou da união estável, ainda que a sua aquisição tenha ocorrido anteriormente ao início da convivência do casal, até a separação de fato;

(ii) a valorização das quotas sociais ou ações societárias decorrentes dos lucros reinvestidos na sociedade na vigência do casamento ou união estável do sócio, ainda que a sua constituição seja anterior à convivência do casal, até a data da separação de fato.

Assim, a valorização de participações societárias ocorridas na constância do casamento ou da união estável, ainda que adquiridas antes do início do relacionamento, passam a ingressar na comunhão, o que certamente trará impacto no planejamento patrimonial das famílias.

No contexto do Direito de Família, os bens dos cônjuges e companheiros são classificados de acordo com o momento e a forma como foram adquiridos. Essa classificação é fundamental para determinar a sua propriedade e administração durante o relacionamento, bem como para a partilha em caso de divórcio, dissolução da união estável, ou falecimento de uma das partes. Para fins desse artigo, adotaremos o termo “cônjuge” para nos referirmos tanto àqueles unidos pelo casamento, quanto aos companheiros em união estável.

Em relação aos bens próprios (particulares) que cada cônjuge possuía ao se casar ou estabelecer união estável, encontram-se os bens móveis, imóveis, corpóreos, incorpóreos, fungíveis, infungíveis, consumíveis, inconsumíveis, divisíveis, indivisíveis, singulares, principais, acessórios, domésticos ou industriais.

Os frutos, por sua vez, são acessórios que a coisa produz. Nas palavras de Arnold Wald[2]: “Os frutos são acessórios que a coisa produz com certa regularidade, distinguindo-se dos produtos, que só excepcionalmente surgem. Os frutos podem ser naturais, quando oriundos da ação da própria natureza, com ou sem o concurso do homem (v. g., plantações), e civis, quando são consequência de operações econômicas (v. g., os aluguéis de um prédio e os dividendos das ações).” Interessa-nos, aqui, os frutos civis na forma de lucros empresariais, considerando sua distribuição como dividendos, sua retenção em reservas da empresa ou sua aplicação no próprio capital social, que pode resultar na valorização das quotas existentes ou na emissão de novas participações.

Nesse sentido, os frutos civis gerados por dividendos pagos a sócios de uma empresa, cujas quotas ou ações tenham sido adquiridas antes ou durante do casamento ou união estável, integram o patrimônio comum do casal. Dessa forma, no caso de separação ou dissolução da união, esses valores devem ser partilhados, conforme o regime de bens adotado.

Como representação de uma fração do capital social da empresa, a quota está diretamente ligada ao valor patrimonial e econômico da sociedade. Se, por exemplo, a empresa aumenta seu patrimônio líquido devido ao crescimento dos ativos, redução de passivos ou geração de lucros acumulados, o valor das quotas pode se elevar. Isso pode ocorrer, por exemplo, se a empresa adquire bens valiosos, expande suas operações ou melhora sua lucratividade. Também, se a empresa se torna mais atrativa no mercado (por exemplo, por ter uma marca forte, boa gestão ou inovação), as ações podem ser negociadas a um valor superior ao valor patrimonial.

No que diz respeito aos aportes de capital, se novos investimentos são realizados na empresa e não há diluição proporcional dos sócios, o valor individual das quotas pode aumentar. Da mesma maneira, se a empresa demonstra potencial de crescimento e rentabilidade futura, isso pode aumentar o valor de mercado das quotas, ainda que o patrimônio líquido não tenha mudado significativamente.

Logo, no contexto de um divórcio ou dissolução de união estável, a possibilidade de dividir os lucros de uma empresa na qual um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros possui participação, depende de esses valores terem sido efetivamente recebidos pelo sócio na forma de dividendos.

Nessa hipótese, os lucros distribuídos são considerados frutos civis, integrando o patrimônio comum do casal. Assim, conforme o artigo 1.660, inciso V, do Código Civil, esses valores devem ser incluídos na partilha de bens.

Mas situação diferente á a valorização das quotas e o seu ingresso no rol de bens que entram na comunhão do casal ou dos conviventes. A controvérsia central sobre a possibilidade de dividir a valorização das quotas sociais reside na sua classificação como “fruto”.

Se a valorização das quotas ou ações, cuja participação societária foi adquirida por um dos cônjuges antes da união, foram revertidos aos sócios através da distribuição de dividendos, a valorização também é comunicável? Parece-nos que a resposta está prevista no inciso V, do art. 1.660. Quando um dos cônjuges adquire participação societária antes da união (bem particular), os dividendos gerados devem ser partilhados em caso de separação.

Ao decidir sobre o tema (Resp nº 1.173.931/RS) o STJ entendeu que “a valorização patrimonial das cotas sociais de sociedade limitada, adquiridas antes do início do período de convivência, decorrente de mero fenômeno econômico, e não do esforço comum dos companheiros, não se comunica.”

Do corpo do acórdão, extrai-se, ainda, o seguinte: “É preciso destacar que, além de a aquisição ocorrer durante o período de convivência, é necessária a presença de um segundo requisito, qual seja, que esse crescimento patrimonial advenha do esforço comum, mesmo que presumidamente.

E continua: “A valorização de cota social, pelo contrário, é decorrência de um fenômeno econômico, dispensando o esforço laboral da pessoa do sócio detentor. Logo, não se faz presente, mesmo que de forma presumida, o segundo requisito orientador da comunhão parcial de bens, que é o esforço comum. Não há, portanto, relação entre a comunhão de esforços do casal e a valorização das cotas sociais que o companheiro detinha antes do período de convivência.”

Em outra oportunidade (REsp 1.595.775), o STJ definiu que, para fins de partilha, deve ser considerado o valor do capital social integralizado na data da separação, ou seja, o montante efetivamente aportado na empresa no momento de sua constituição. Na decisão, os ministros concluíram que, na ausência de distribuição de lucros aos sócios, não há incremento ao patrimônio comum do casal. Dessa forma, entenderam que as quotas originadas da capitalização de reservas e lucros são patrimônio exclusivo da sociedade empresarial e, portanto, não se submetem à partilha.

Como visto, a orientação do STJ é no sentido de que “a valorização e o aumento do capital social não constituem fruto do sócio individualmente, mas, sim, do empreendimento empresarial como um todo”. Para o Tribunal, não há fundamento jurídico que justifique a inclusão da valorização das quotas empresariais, adquiridas antes do início da convivência, na partilha de bens sob o regime de comunhão parcial. Isso ocorre porque esse acréscimo patrimonial não se enquadra na definição de fruto partilhável entre os cônjuges.

De outro lado, o TJMG (Apelação Cível nº 1.0000.23.174144-8/001), decidiu que: “os incrementos patrimoniais das sociedades empresárias, tais como a valorização das quotas sociais, devem integrar a partilha. Isso porque, ao deixar de promover as retiradas dos lucros para investi-los no patrimônio da empresa (na forma de crescimento da sociedade, por exemplo), os sócios despojam seu cônjuge / convivente dos resultados provenientes do trabalho direto, configurando evidente enriquecimento às custas do outro. Presume-se, pois, o esforço comum para a valorização do patrimônio privado do outro.”

Parece-nos que a proposta da Comissão de Reforma do Código Civil teve como meta incluir no rol de comunicação a valorização das quotas e ações a fim de regularizar, legalmente, a questão da partilha das quotas e ações na dissolução da sociedade conjugal, mesmo que contrarie o entendimento do STJ.

E, ao que tudo indica, a Comissão conta com apoio doutrinário. O Prof. Rolf Madaleno[3] ensina que: “A valorização das cotas sociais não é um fenômeno econômico natural, pois está associado ao trabalho e esforço dos sócios, comumente com muitos sacrifícios pessoais e financeiros para seus cônjuges e familiares, com o empenho e solidariedade de todos, na busca de uma conquista familiar, e esta, quando alcançada pela valorização das cotas sociais em decorrência do crescimento patrimonial da empresa, não pode ser uma premiação unilateral, como se fosse apenas um fenômeno isolado e natural, porquanto pensar dessa forma seria admitir não só o enriquecimento indevido, mas, sobretudo, uma porta para a fraude conjugal, pois bastaria um consorte constituir antes do casamento uma sociedade empresária de irrisório capital social, e desaguar para esta empresa todas as suas vitórias financeiras alcançadas com a ajuda e a solidariedade direta e indireta da esposa, para ao final excluir sua riqueza empresarial da partilha dos bens comuns e quem sabe dividir somente os bens comprados por sua mulher.”

E depois prossegue: “Portanto, se os benefícios não são pagos aos sócios e passam a integrar o fundo de reserva da sociedade e a pessoa jurídica posteriormente aumenta o seu capital social com estas reservas, as novas quotas ou ações, ou mesmo o crescimento patrimonial que a sociedade experimenta com a reaplicação destes recursos, seguramente, tem o efeito da comunicabilidade, ao menos para fins de reembolso ao consorte que não participa da sociedade, sob pena de restar configurado o abjeto enriquecimento indevido, levando em conta na liquidação da partilha o valor das quotas ou das ações, que são proporcionais ao patrimônio final da empresa, da mesma forma como o cônjuge ou companheiro teria um crédito sobre as benfeitorias realizadas em bens privativos, mas com recursos do casamento.”

Mas, independentemente da discussão jurídica em torno do esforço laboral ou não do cônjuge ou convivente do sócio, para fins de comunhão da valorização das quotas, como previsto no PL 04/2025, nosso foco aqui é o de examinar a aplicabilidade da cláusula change in law como pacto pós-nupcial para fins de alteração do contrato social, cujo alvo é o de preservar os bens particulares do sócio em caso de rompimento do vínculo de casamento ou de união estável.

A cláusula change in law permite que as partes ajustem seus direitos e obrigações caso uma nova legislação altere as regras aplicáveis a determinada situação. No contexto do PL 04/2025, essa cláusula poderia ser utilizada em um pacto pós-nupcial para regular a partilha da valorização das quotas societárias em casamentos e uniões estáveis já existentes.

Essa possível mudança na legislação gera preocupação para aqueles que já se encontram em um casamento ou união estável sob o regime da comunhão parcial de bens, pois o novo entendimento poderia impactar relações patrimoniais previamente consolidadas. Assim, surge a questão: é possível utilizar um pacto pós-nupcial para adequar a relação patrimonial dos cônjuges à nova realidade normativa?

A sua aplicabilidade em um pacto pós-nupcial no Direito Brasileiro é um tema que carece de fundamentação específica e enfrenta desafios jurídicos relevantes. Pensamos, neste primeiro momento, que essa cláusula poderá ser inserida no pacto pós-nupcial como um mecanismo de proteção patrimonial para regular os efeitos de mudanças legislativas futuras. Com essa cláusula, os cônjuges poderiam estabelecer que eventuais alterações na legislação que impactem seu regime de bens não serão automaticamente aplicáveis ao seu casamento ou união estável, garantindo maior previsibilidade e segurança jurídica.

Por exemplo, um casal poderia firmar um pacto pós-nupcial estipulando que a valorização das quotas societárias permanecerá como bem particular, independentemente de eventuais modificações no Código Civil. Assim, caso o PL 04/2025 seja aprovado e passe a vigorar, essa mudança não teria efeitos sobre o patrimônio do casal, pois sua relação patrimonial já teria sido ajustada previamente.

No entanto, há dois pontos fundamentais a serem considerados:

(i) Princípio da imutabilidade do regime de bens: Como regra, o regime de bens é fixado no momento do casamento ou união estável e só pode ser alterado mediante autorização judicial, conforme já mencionado. Logo, um pacto pós-nupcial contendo essa cláusula dependeria de homologação judicial para ser válido.

(ii) Limites da autonomia privada: Apesar da liberdade contratual ser um princípio relevante no Direito de Família, a proteção patrimonial de ambos os cônjuges e a vedação ao retrocesso patrimonial impõem limites à adoção de cláusulas que possam mitigar direitos decorrentes da comunhão parcial.

Embora a cláusula change in law seja amplamente utilizada em contratos empresariais e comerciais, sua aplicação em um pacto pós-nupcial no Brasil esbarra em restrições normativas e exigiria homologação judicial. No contexto do PL 04/2025, caso aprovado, poderia haver discussões sobre a validade de ajustes entre cônjuges para regulamentar a comunicabilidade da valorização de quotas societárias.

Porém, sem uma previsão expressa na legislação brasileira permitindo pactos pós-nupciais autônomos, sua aplicação dependeria de interpretação jurisprudencial e da aceitação do Poder Judiciário em casos concretos.

No entanto, nosso posicionamento, repita-se, não pretende encerrar a discussão nem oferecer uma solução definitiva sobre o tema. A intenção deste debate não é fornecer uma resposta definitiva, mas sim estimular uma reflexão sobre como a cláusula change in law poderia ser aplicada diante de possíveis mudanças legislativas e quais seriam seus efeitos nas relações patrimoniais já existentes.

O tema envolve questões jurídicas complexas e em constante evolução, tornando essencial a consideração de diferentes perspectivas e interpretações antes de se chegar a qualquer conclusão definitiva. Além disso, sua natureza multifacetada permite abordagens diversas, exigindo uma análise contínua à luz da legislação, da doutrina e da jurisprudência.


[1] E também  os frutos dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.

[2] Direito das coisas [livro eletrônico] / Arnoldo Wald, Patricia Faga Iglecias Lemos. — 1. ed. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2023.

[3] MADALENO, Rolf. Direito de Família. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. P. 785

Carlos Borrelli é advogado especializado em planejamento sucessório e direito tributário, e sócio-fundador do Carlos Borrelli Advogados Associados, com sede em Curitiba/PR.

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