Reconhecimento da renúncia sucessória via pacto antenupcial

Por Ana Bárbara Zillo

Em recente decisão, o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) reconheceu a validade da renúncia sucessória entre cônjuges, celebrada por meio de pacto antenupcial. A decisão abre caminho para a utilização do pacto como mais uma ferramenta de planejamento sucessório.

Além disso, é um precedente relevante que reforça a autonomia privada e a liberdade na disposição patrimonial, ressignificando a importância do planejamento patrimonial e sucessório no cotidiano dos casais.

No caso, a Corte reformou a decisão da Juíza Corregedora do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Ibitinga/SP, que havia negado o registro de pacto antenupcial em Cartório de Registro de Imóveis, no qual os cônjuges, que optaram pelo regime da separação total de bens, renunciavam reciprocamente ao direito sucessório em concorrência com seus descendentes e ascendentes. O argumento da Juíza Corregedora se baseava em dispositivo do Código Civil que proíbe contratos sobre herança de pessoa viva.

Em seu voto, o Desembargador Francisco Loureiro, relator do caso, destacou que “a vedação da renúncia antecipada da herança parece não mais condizer com os anseios da sociedade atual. Ora, se o casal opta pelo regime de separação de bens, sua vontade seguirá a mesma lógica de não compartilhar o matrimônio com o fim da relação, seja tal fim operado em vida, ou com a morte. Com mais força ainda, revela a vontade dos cônjuges e companheiros se realiza mediante declaração expressa de vontade”.[1]

Historicamente, a validade da renúncia sucessória no pacto antenupcial era controversa devido à interpretação do Art. 426 do Código Civil, que veda contratos sobre herança de pessoa viva. O fundamento clássico dessa proibição visa evitar contratos que possam incentivar interesses escusos na sucessão. Em outras palavras, é vedado dispor ou renunciar à herança de pessoa viva, prática conhecida como “pacta corvina“.

A expressão “pacta corvina“, derivada do latim e significando “acordo do corvo”, faz referência aos hábitos alimentares da ave, que aguarda a morte de suas vítimas para se alimentar de seus restos mortais. Essa expressão descreve a situação em que o proprietário do patrimônio ainda não faleceu, mas sua futura herança já está sendo negociada.

Nesse sentido, e para nossa satisfação, o Tribunal adotou a corrente doutrinária moderna, reconhecendo a primazia da autonomia da vontade das partes na definição de seus direitos patrimoniais e sucessórios. Segundo o relator, a renúncia à herança prevista no pacto antenupcial não viola o Art. 426 do Código Civil, pois “renúncia” é um ato unilateral que impede a transmissão de direitos, não configurando como um acordo ou contrato sobre herança futura.

Vale transcrever outros trechos do acordão:

“a cláusula não infringe o art. 426 do Código Civil por duas razões distintas: em primeiro, porque a renúncia, ato unilateral por excelência, não se confunde com contrato; em segundo, porque o dispositivo veda a estipulação relativa à herança – que diz respeito aos bens transmitidos por ocasião da morte –, silenciando em relação ao direito sucessório – disposição legal que justifica a atribuição da herança a alguém.

(…) Na renúncia não se dispõe e nem se cria qualquer ônus sobre a herança. Apenas o potencial herdeiro abdica de tal qualidade antes da abertura da sucessão. O único óbice diz respeito ao próprio herdeiro, e não ao titular do patrimônio, qual seja, o de abdicar de avaliar quanto ao melhor momento da renúncia.

(…) Ao renunciar à herança, o renunciante abre mão de qualquer benefício que poderia ter com o falecimento do autor da herança. Ao contrário da pacta corvina, a renúncia à herança não deve despertar qualquer desejo de morte do autor da herança quando, do contrário, estaria em acordo com um projeto de vida e de planejamento familiar.”

No interessantíssimo acórdão, há ainda a citação à doutrina de Rolf Madaleno e Daniel Bulcar, que defende a autonomia sucessória em oposição à ingerência do Estado, que busca controlar o patrimônio e a sucessão das pessoas:

“Note-se, ainda, que os interessados renunciaram por meio do pacto ora analisado apenas à concorrência com descendentes ou ascendentes (art. 1.829, I e II, do Código Civil), disposição aceita por boa parte da doutrina. Acerca de pactos sucessórios renunciativos, Rolf Madaleno, citando Daniel Bulcar4 , esclarece que “admitir a sua incidência está no cerne da autonomia sucessória, e não pode o Estado, a partir de uma proibição pouco delineada como a do artigo 426 do Código Civil, vedar tais pactos, pois se trata de situação jurídica dúplice, em que aspectos patrimoniais e existenciais se confundem plenamente” (Separação convencional de bens, expectativa de fato e renúncia da concorrência sucessória em pacto antenupcial. In Direito Civil: Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência, vol. 2; org. Luiz Felipe Salomão, Flávio Tartuce São Paulo: Atlas, 2021 p. 742).”

Essa visão reforça a importância do planejamento sucessório, especialmente para aqueles que escolhem o regime de separação total de bens. No dia a dia, observamos que a maioria das pessoas que se casam sob o regime de separação total de bens desconhecem que, em caso de falecimento de um dos cônjuges, o outro será considerado herdeiro, concorrendo com os descendentes (filhos, netos, bisnetos) ou ascendentes (pais, avós, bisavós), dependendo da situação.

O cônjuge sobrevivente poderá, inclusive, se não houver descendentes ou ascendentes, herdar a totalidade do patrimônio (Art. 1829 do Código Civil). Isso ocorre porque, de acordo com o Art. 1845 do Código, o cônjuge é considerado herdeiro necessário.

O problema prático do regime de separação total de bens, é que, muitas pessoas que o escolhem, desejam manter seus patrimônios separados, especialmente em famílias recompostas, formadas por pessoas que já foram casadas, têm filhos e posteriormente se casam novamente. Via de regra, esses indivíduos não querem que parte de seu patrimônio, que deveria ser destinado aos filhos, seja transferida ao novo cônjuge.

Para evitar essa situação, uma solução viável no planejamento patrimonial e sucessório seria permitir que, por meio do pacto antenupcial ou da escritura pública de união estável, os cônjuges ou companheiros renunciem ao direito à herança um do outro em casos de concorrência com filhos ou pais, conforme a recente decisão abordada.

Vale ressaltar que o Projeto de Lei (PL) 4/2025, para reforma do Código Civil propõe a alterar a redação do Art. 426 do Código Civil para autorizar a renúncia antecipada à herança, nesses termos:

Art. 426. Não são considerados contratos tendo por objeto herança de pessoa viva, os negócios:

§ 1º  (…)

II – que permitam aos nubentes ou conviventes, por pacto antenupcial ou convivencial, renunciar à condição de herdeiro.”

Outra mudança relevante poderá ocorrer na redação do Art. 1.845 do Código Civil, de modo a restringir a categoria de herdeiros necessários apenas a descendentes e ascendentes, excluindo cônjuges e companheiros:

“Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes.”

Essa proposta legislativa reflete um amadurecimento na compreensão do planejamento sucessório no Brasil. Ao reconhecer a possibilidade de renúncia recíproca ao direito sucessório por meio de pacto antenupcial, se fortalece a autonomia privada, reduz potenciais conflitos familiares e proporciona maior segurança jurídica à sucessão patrimonial.

Agora, resta acompanhar como a jurisprudência irá consolidar esse entendimento e quais serão os desdobramentos legislativos dessa mudança de perspectiva.

Para aqueles que desejam estruturar seu patrimônio com mais previsibilidade, essa decisão representa um marco relevante na construção de um Direito de Família e Sucessões mais dinâmico e adaptado às demandas atuais.


[1] TJSP, Apelação Cível nº 1000348-35.2024.8.26.0236, julgamento em 01/10/2024.

Ana Bárbara Zillo é advogada pós-graduanda em planejamento patrimonial e sucessório pela FGV SP e associada do departamento de wealth planning do BLS Advogados, em São Paulo/SP.

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