Por David Roberto R. Soares da Silva
Uma recente decisão da Justiça do Trabalho reconheceu a existência de vínculo de emprego entre ex-cônjuges, determinando ao ex-marido o pagamento de verbas trabalhistas e anotações na Carteira de Trabalho. Tema inusitado, mas não inédito, ele se apresenta como alerta para situações em que trabalho e relação afetiva ou conjugal se misturam, com consequências patrimoniais.
O reconhecimento do vínculo de emprego entre familiares, especialmente entre cônjuges ou ex-cônjuges, é tema sensível e complexo no âmbito do Direito do Trabalho brasileiro. A jurisprudência tem oscilado entre a presunção de afetividade, que justificaria a ausência de vínculo trabalhista ou de emprego, e a primazia da realidade, que exige a verificação concreta dos elementos da relação de emprego em uma determinada.
É nesse cenário que o julgamento do processo nº 1000840-13.2024.5.02.0473 se destaca, cuja decisão foi proferida pela 13ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2), com jurisdição na Grande São Paulo e outros municípios.
Vamos ao caso.
A reclamante ajuizara reclamação trabalhista contra seu ex-marido, pleiteando o reconhecimento de vínculo de emprego entre 1976 e 2007, período em que foram casados. Na ação, alegou que atuava como secretária no consultório médico do ex-marido, prestando serviços habituais e recebendo remuneração mensal de um salário-mínimo, embora sem qualquer anotação na carteira de trabalho, outros direitos trabalhistas ou recolhimentos previdenciários. O valor pleiteado superava R$ 250 mil.
Em sua defesa, o ex-marido negou a existência de vínculo de emprego, alegando que a ex-esposa o acompanhava na clínica médica apenas por afetividade conjugal, sem subordinação, onerosidade ou habitualidade.
Em primeiro grau, a Justiça do Trabalho negou o reconhecimento do vínculo, pois concluiu não terem sido comprovados os requisitos caracterizadores da relação de emprego previstos na lei trabalhista[1]: subordinação, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade. A sentença ainda destacou que as partes foram casadas por 37 anos sob o regime da comunhão total de bens e que a colaboração no ambiente familiar, por si só, não seria suficiente para configurar vínculo empregatício. Outros argumentos utilizados para afastar o reconhecimento incluíram a não comprovação do recebimento de salário e o fato de que a reclamante se ausentava para viagens em família. Com essas razões, a sentença concluiu que os serviços prestados pela ex-mulher decorreram de colaboração afetiva no âmbito da sociedade conjugal, e não de um contrato de trabalho.
Inconformada, a ex-esposa recorreu a TRT2 reiterando o pedido para reconhecimento do vínculo empregatício. Em 3 de abril de 2025, a 13ª Turma do TRT-2, por maioria, deu provimento ao recurso, reformando a sentença de 1º grau para reconhecer a existência de vínculo de emprego entre os ex-cônjuges no período indicado na ação inicial (1976 a 2007), na função de secretária e com remuneração de um salário-mínimo.
A decisão foi fundamentada principalmente no princípio da primazia da realidade, pelo qual se deve investigar a real natureza da relação havida entre as partes, independentemente da aparência ou da ausência de formalização contratual. Para o desembargador Luís Augusto Federighi, relator do caso, o contrato de trabalho é um “contrato-realidade” e que a sua análise deve se pautar no cotidiano da prestação de serviços.
Usando como base o Art. 818, II, da CLT, a decisão considerou que o ex-marido havia confessado a prestação de serviços da ex-mulher ao confirmar que ela o ajudava desde o início das atividades do consultório, trabalhando na recepção e o auxiliando durante os atendimentos, mesmo antes da contratação de outros empregados. Dessa forma, caberia a ele o ônus da prova de afastar a existência de vínculo de emprego, o que não teria ocorrido.
Apesar de o ex-marido ter negado o pagamento de salário, o Tribunal considerou presente a onerosidade (um dos requisitos da relação de emprego ), em razão da dinâmica econômica e financeira da relação, dada a existência de contas bancárias separadas. A subordinação – outro requisito essencial – ficou provada pela rotina de trabalho exercida pela ex-mulher e até mesmo pelo uso de uniforme, conforme declarado por testemunhas. Uma das testemunhas reconheceu que a ex-esposa atendia ligações, auxiliava nos atendimentos médicos e repassava ordens a outros empregados. Mesmo na ausência de controle rígido de jornada e a liberdade de ausências para viagens, o Tribunal entendeu que essas peculiaridades não afastavam o vínculo empregatício.
Ponto interessante da decisão diz respeito à possibilidade de coexistência simultânea de vínculo afetivo e empregatício, e que um não é incompatível com o outro. A relação conjugal não obsta o reconhecimento do vínculo empregatício, desde que preenchidos os requisitos legais, como no caso analisado. O fato de a ex-mulher se ausentar em viagens familiares ou ter uma relação de confiança com o empregador (então marido) não anula a habitualidade e subordinação existentes no desempenho das funções de empregado, reconheceu a decisão.
Houve um voto divergente, o do desembargador Paulo José Ribeiro Mota, que entendeu não haver relação de emprego. Para ele, os serviços prestados configuravam uma sociedade de fato surgida no contexto da comunhão de bens, e eventual condenação poderia recair sobre patrimônio pertencente também à própria autora, dada a confusão patrimonial decorrente da sociedade conjugal.
Os seus argumentos, no entanto, não foram acatados, decidindo a Turma pelo reconhecimento do vínculo empregatício entre os ex-cônjuges.
Não há dúvidas de que a decisão representa um importante precedente no reconhecimento de vínculos laborais encobertos por relações familiares, mas não apenas entre cônjuges, podendo se estender a outros familiares. Tendo como foco a aplicação do princípio da primazia da realidade sobre formalismos, a decisão estabelece que laços afetivos não são, por si sós, impeditivos da configuração da relação de emprego.
É certo que a decisão do TRT2 teve como foco a relação conjugal, mas os seus fundamentos se acomodam perfeitamente em outras situações familiares.
Do ponto de vista patrimonial, a decisão é um alerta, especialmente no âmbito de empresas ou empreendimentos familiares em que membros da família exercem funções que podem ser enquadradas como uma relação de emprego. Insere-se nos empreendimentos familiares a atividade rural, em que não são incomuns situações em que vários membros da família exercem funções e atividades no empreendimento. Eles podem ser remunerados de várias formas, sem qualquer formalização, incluindo percentual da produção, remuneração em dinheiro, ou a combinação de ambos. Ainda que o empreendimento possa ser da família como um todo, é normal que seja conduzida pelo patriarca ou matriarca com auxílio de filhos, genros, noras e outros familiares.
Em casos extremos, uma desavença familiar pode resultar no ingresso de medida judicial pleiteando vínculo empregatício com o comprometimento do patrimônio e da renda da entidade familiar para fazer frente a eventual condenação na Justiça do Trabalho. Em uma condenação vultosa, esse montante deixaria de compor o patrimônio familiar que eventualmente seria partilhado entre os demais herdeiros, tornando-se mais um motivo de disputas e discórdia.
[1] Arts. 2º e 3º da CLT.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor de Tributação das aplicações financeiras, empresas offshore e trusts no exterior (2024), Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais (2023), do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2018, 2022 e 2025), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.
