Robin Hood às Avessas: O Peso do IRPFM sobre Quem Produz

Por Octavio Arruda

A tributação de lucros e dividendos no Brasil é tema recorrente – exaltado em debates públicos, defendido com fervor nas redes sociais e carregado de ideologia, achismos e meias verdades. Este artigo não pretende esclarecer, mas sim provocar, questionando premissas estabelecidas e oferecendo um olhar diferente sobre o Projeto de Lei nº 1.087/2025 (PL 1.087/25).

Apresentado em março, o PL propõe uma nova estrutura do Imposto de Renda para pessoas físicas, com dois pilares principais:

  • Isenção para quem ganha até R$ 60 mil por ano.
  • Criação do Imposto de Renda Mínimo (IRPFM) para quem recebe mais de R$ 600 mil ao ano.

Para isso, o projeto prevê dois testes. O primeiro verifica se o contribuinte ultrapassa os R$ 600 mil anuais, excluindo rendimentos como doações, heranças e ganhos de capital com bens. O segundo calcula a alíquota efetiva paga no ano: se for inferior a 10%, a diferença será cobrada como IRPFM, até atingir essa alíquota mínima.

Além disso, o PL antecipa a cobrança para empresas que distribuam mais de R$ 50 mil mensais em dividendos, retendo diretamente os 10% na fonte. Há uma previsão de restituição se a carga tributária consolidada (IRPJ + CSLL + IRPF) ultrapassar os patamares atuais (34% para empresas em geral, 40% para seguradoras, 45% para bancos). Contudo, como o cálculo é feito sobre lucro contábil e não fiscal, é de se pensar se algum contribuinte terá, de fato, direito à restituição. 

Real intenção

Podemos encarar o PL como um verdadeiro Projeto Robin Hood: retirando dos ricos para beneficiar os pobres. Não há juízo de valor aqui, não é necessariamente bom ou ruim – apenas uma transferência de riqueza por meio de política tributária. 

Também é possível interpretá-lo como uma forma disfarçada de reintroduzir a tributação de dividendos. A complexidade dos testes e as mudanças nas bases de cálculo indicam uma intenção clara: garantir que o contribuinte de alta renda pague pelo menos 10% de IR sobre seus ganhos, mesmo que esses ganhos venham de fontes isentas. Como se diluir abaixo de 10% se os rendimentos isentos foram excluídos do cálculo? Com dividendos, é claro.

Além disso, vale lembrar que o próprio PL prevê a tributação de dividendos que superem R$ 50 mil, na fonte.

Memória Curta

“Aí, mas qual o problema de tributar dividendos? Nós somos o único país que n…”

O problema é que o Brasil já tributa os dividendos, mas de forma consolidada. Diferente do consenso que parece tomar conta do discurso atual os dividendos no Brasil já foram tributados de forma individualizada, até 1995.

A partir da reforma realizada no Governo FHC, os dividendos passaram a ser isentos e a tributação das empresas aumentou de forma proporcional e consolidada. Ou seja, o lucro das empresas era tributado em dois momentos, uma parcela na PJ e outra parcela diferida até o momento do pagamento dos dividendos.

Tal reforma do Imposto de Renda, liderada pelo então secretário Everardo Maciel, visou promover maior integração entre a tributação da pessoa jurídica e da pessoa física, evitar a bitributação, simplificar o sistema tributário e evitar um dos maiores desafios de evasão fiscal à época, a chamada DDL (Distribuição Disfarçada de Lucros).

Na época, o lucro da empresa era tributado em dois momentos, sendo um deles diferido até o momento de disponibilização aos acionistas. Ora, não precisamos ir muito longe para saber que o Brasil é um país de população, no mínimo, criativa, de modo que a vida de muitos empresários era vivida na PJ. Explico.

Se posso diferir boa parte do imposto para um momento decidido por mim, posso ter meus cartões de crédito, carros, casas e centro de custos da vida privada na própria empresa e nunca distribuir esse tal de dividendo. E assim era feito.

Para resolver o problema de arrecadação de um imposto que nunca chegava, o Governo FHC propôs e aprovou a reforma de 1995, unificando a tributação na PJ, tirando a escolha sobre o recolhimento das mãos dos acionistas e deixando que as decisões sobre a disponibilização desses recursos fossem tomadas com base em negócios e reinvestimento, não elisão fiscal.

Fast forward para hoje. O que se pretende, de forma direta e indireta, é tributar os dividendos sem a contrapartida de redução de carga tributária na PJ. Infelizmente essa afirmação não é passível de réplica, pois é um fato.

Espelho, espelho meu

O que tudo isso diz sobre nós, enquanto país? Novamente, vamos tirar o Fla x Flu e ficamos com o nosso próprio reflexo no espelho.

Um projeto como este, apresentado com uma redação confusa e lacunas técnicas, parece intencionalmente criado para dificultar o debate e gerar uma percepção pública positiva em ano pré-eleitoral. A promessa é isentar 90% da população e tributar “os mais ricos”, mas sem mexer nas isenções de grandes rentistas.

A mensagem que consegui captar com isso tudo é um tanto quanto triste. De tempos em tempos, é importante fazer um teste de sanidade e falar as coisas em voz alta. 

O governo está cumprindo uma promessa de campanha para isentar boa parte da população brasileira do IRPF. Como a crise atual é reputacional e fiscal, um projeto como esse não poderia ser apresentado sem uma contrapartida de arrecadação. Pois bem, apresentaram o IRPFM, que afetará a parcela de renda mais alta da população, portanto minoria, por meio de uma conta de chegada para arrecadar de forma indireta a partir dos lucros e dividendos de empresas no país. 

O projeto Robin Hood é parcial e ignora princípios constitucionais tributários, como o da progressividade, isonomia e tantos outros. Não que isso tenha muita relevância hoje. 

Mas esse Robin Hood, que um dia foi coerente dentro de sua própria filosofia, foca apenas em parcela dos ricos, que por coincidência é a parcela que toma risco, produz, gera emprego e renda em um país tão hostil com quem empreende. 

Esse justiceiro caça o empresário do Simples Nacional, do Lucro Presumido e do Lucro Real. Ele pega desde o prestador de serviços, passando pelo fabricante de sapatos até o banqueiro. Não pega os diretores CLT dos bancões da Faria Lima, pois já são tributados – e muito – na fonte, mas sabe quem ele, também, não alcança? O ex empresário, ex banqueiro, ex fazendeiro que já realizaram o evento de liquidez e hoje se sentam em bilhões de reais em títulos isentos.

Esse Robin Hood parece mais um miliciano, que cobra de quem produz para não incomodar o rentista.

Octavio Arruda é advogado com pós-graduação em Planejamento Patrimonial e Sucessório pela FGV Direito SP, e head de wealth planning do Andbank em São Paulo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *