Por David Roberto R. Soares da Silva
Em recente Solução de Consulta, a Receita Federal se posicionou sobre o tratamento tributário a ser dado a um trust irrevogável e discricionário em que um potencial beneficiário era residente no Brasil. Foi a primeira manifestação do gênero que se tem notícia depois da edição da Lei nº 14.754/2023. Spoiler alert: a notícia não é boa…
A promulgação da Lei nº 14.754 representou uma mudança radical na forma de tributação de ativos no exterior detidos por pessoas físicas residentes no Brasil, em especial aplicações financeiras e empresas offshore. A lei teve como principais focos a uniformização da tributação de investimentos financeiros internacionais e combater o diferimento tributário decorrente do uso de estruturas offshore. Ela ainda trouxe, pela primeira vez, um regramento aplicável aos trusts, cujo tratamento tributário até então era objeto de controvérsias e entendimentos equivocados que apenas geravam insegurança jurídica.
Neste contexto, a Solução de Consulta COSIT nº 75/2025, de 30 de abril de 2025, assume especial relevância ao estabelecer o entendimento da Receita Federal sobre a aplicação do regime de transparência fiscal aos trusts complexos, notadamente aqueles irrevogáveis e discricionários.
Os trusts são instrumentos típicos de países que receberam influência jurídica do direito inglês (common law), com extensa aplicação em planejamentos patrimoniais, sucessórios e de proteção de ativos. Sem uma figura correspondente no direito brasileiro, a doutrina e a jurisprudência pátrias têm admitido a eficácia de trusts estrangeiros, especialmente quando regularmente constituídos e executados no exterior. Antes da Lei nº 14.754/2023, a ausência de legislação tributária específica gerava insegurança jurídica. Foi nesse vácuo normativo que a Lei nº 14.754/2023 buscou intervir, prevendo um tratamento tributário específico aplicável aos trusts que tivessem sido instituídos ou tivessem por beneficiários pessoas físicas residentes fiscais no Brasil.
Em seus Arts. 10 a 12, a lei estabeleceu o regime de transparência fiscal aplicável aos trusts estrangeiros, determinando que os bens e direitos objeto dessas estruturas sejam considerados, para fins tributários, como pertencentes ao instituidor (settlor) ou aos beneficiários, conforme o caso. Em particular, o Art. 10 da lei define que, salvo disposição em contrário, os bens permanecerão sob titularidade do instituidor até que haja distribuição ao beneficiário ou seu falecimento.
O § 1º do mesmo artigo, por sua vez, estabelece que, no caso de trusts irrevogáveis, a titularidade é atribuída aos beneficiários, caso o instituidor abdique de qualquer direito sobre os ativos. E foi essa a disposição utilizada como ponto central da resposta da Receita Federal, como veremos a seguir.
A Solução de Consulta COSIT nº 75/2025 (SC 75/2025) trata de um caso concreto apresentado por um pai, representando seu filho menor, que buscava esclarecimentos quanto à aplicabilidade dos Arts. 10, 11 e 12 da Lei nº 14.754/2023. A dúvida central residia na interpretação da norma à luz das características específicas de um trust irrevogável e discricionário instituído nos Estados Unidos em 2008.
De acordo com relato contido na SC 75/2025, o trust fora instituído por um trustee estrangeiro, por meio de uma declaration, com capitalização oriunda de pessoa jurídica estrangeira. O trust tinha como propósito a proteção patrimonial para descendentes de um acionista de empresa brasileira, apenas em situações de necessidade extrema. Esse acionista, segundo os documentos apresentados, nunca fora beneficiário, instituidor direto, nem teve qualquer controle sobre os ativos. A discricionariedade absoluta do trustee e a inexistência de qualquer distribuição efetiva desde a instituição do trust até o presente momento foram ressaltadas como elementos que afastariam, segundo o contribuinte, a incidência das obrigações tributárias previstas na nova lei.
Em sua consulta, o contribuinte alegou que, à luz do Art. 12, inciso IV, da Lei nº 14.754/2023, os residentes no Brasil somente poderiam ser considerados como beneficiários de um trust irrevogável e discricionário após a implementação de uma condição suspensiva representada por uma decisão do trustee em realizar uma distribuição, o que jamais havia ocorrido. A ausência dessa deliberação do trustee em favor do beneficiário impediria que ele fosse considerado como titular dos bens ou rendimentos do trust.
Ao analisar o caso, Receita Federal rejeitou o argumento de que a ausência de distribuição ou de direito adquirido sobre os bens afastaria o enquadramento como beneficiário do trust. Para o fisco, a definição legal do Art. 12, inciso IV, da Lei nº 14.754/2023 abrange todas as pessoas “indicadas para receber do trustee os bens e direitos objeto do trust”, sendo suficiente, portanto, a mera expectativa de direito.
A Receita Federal concluiu que, ainda que o trust tenha sido capitalizado por pessoa jurídica estrangeira, é necessário investigar a “cadeia patrimonial” para identificar a pessoa física que, em última instância, foi titular dos bens aportados ao trust. Essa pessoa será considerada o instituidor para fins da aplicação da legislação brasileira, ainda que os bens tenham sido transferidos de uma pessoa jurídica estrangeira.
Prosseguindo na sua interpretação, o fisco entendeu que o §1º do Art. 10 da Lei nº 14.754/2023 autoriza – para fins fiscais brasileiros – atribuir ao beneficiário de um trust irrevogável e discricionário a titularidade dos bens e rendas do trust, ainda que pelas regras do trust ele não seja proprietário.
Vale transcrever o que diz esse dispositivo:
“Art. 10. (…)
§ 1º A transmissão ao beneficiário poderá ser reputada ocorrida em momento anterior àquele previsto no inciso II do caput deste artigo caso o instituidor abdique, em caráter irrevogável, do direito sobre parcela do patrimônio do trust.”
Em outras palavras, a Receita Federal entende que em um trust irrevogável, dado que o instituidor não é mais titular dos bens transferidos ao trust, a titularidade deve ser atribuída ao beneficiário.
Assim, com base nessa interpretação, os residentes no Brasil que figurem como beneficiários “indicados” em trusts irrevogáveis passam a ser considerados titulares dos bens para fins fiscais, mesmo que não tenham qualquer acesso atual aos ativos, nem tenham recebido qualquer distribuição. Na prática, isso implicaria na obrigatoriedade de declarar esses ativos na Declaração de Bens e Direitos (DAA), bem como apurar rendimentos e ganhos de capital de acordo com a natureza dos ativos detidos pelo trust.
Vale dizer, ainda, que a Receita Federal deixa claro que o tratamento tributário de um trust não depende da natureza discricionária da administração ou da efetiva distribuição dos recursos. A posição como “beneficiário indicado” (Art. 12, inciso IV da Lei nº 14.754/2023) já seria suficiente para que incidam as obrigações tributárias.
A legalidade dessa interpretação é duvidosa, dado que o fisco não pode desconsiderar os aspectos intrínsecos dos trusts irrevogáveis e discricionários , especialmente no que tange à ausência de qualquer titularidade sobre bens e rendas por parte dos beneficiários até uma efetiva distribuição. A caracterização do beneficiário com base na mera expectativa de direito parece absurda, ainda que supostamente baseada no § 1º do Art. 10 da Lei nº 14.754/2023.
Isso porque nem mesmo a lei pode ignorar o que dispõe o Art. 43 do Código Tributário Nacional (CTN), que elege como fato gerador do imposto de renda a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica da renda. No caso do trust irrevogável ou discricionário, o beneficiário “indicado” somente será um beneficiário quando efetivamente vier a receber uma distribuição. Mas o que ocorre se ele falecer antes de qualquer distribuição? Renda ele não teve, mas para o fisco ele deveria ser tributado pela mera expectativa de receber algo do trust.
A imposição de obrigações tributárias a beneficiários que poderão jamais ter acesso aos bens e recursos do trust, por dependerem de eventos futuros e incertos, ou de condições excepcionais, desafia ainda o princípio da capacidade contributiva estabelecido na Constituição Federal, configurando hipótese de tributação de expectativa e não riqueza efetivamente disponível.
Mal comparando, a se permitir a tributação da mera expectativa de renda, em breve se poderá exigir o ITCMD sobre bens de herdeiros de pessoas idosas ou doentes terminais, dado que será uma questão de tempo até que eles herdem os bens…
É fato que a lei é silente quando quanto à natureza discricionária do trust ou à condição suspensiva prevista no instrumento de instituição. No entanto, na sua interpretação, o fisco possui base legal suficiente para afastar a tributação nos moldes como faz na SC nº 75/2025. O próprio princípio da capacidade contributiva (Art. 145 da Constituição) e o Art. 43 do CTN dão sustentação a essa posição. Com base nesses dispositivos, o fisco poderia ter incorporado critérios mais refinados, como a exigência de vesting ou de expectativa concreta de distribuição para exigir o cumprimento de obrigações tributárias por parte dos beneficiários de trusts irrevogáveis e discricionários.
A interpretação ampla da Receita Federal impõe ônus excessivo àqueles em situações em que a disponibilidade econômica ou jurídica da renda é inexistente ou incerta. A equiparação entre expectativa de direito e titularidade, sem que haja distribuição efetiva ou disponibilidade, gera preocupações quanto à segurança jurídica e à proporcionalidade da tributação. Para o fisco, não há problemas de um beneficiário ser compelido a declarar e tributar ativos e rendas que, na prática, poderá jamais possuir.
Desnecessário dizer que esse posicionamento, muito questionável, impacta fortemente o planejamento patrimonial internacional de famílias brasileiras que utilizam trusts no exterior com objetivos sucessórios e de planejamento intergeracional. Ele acende um sinal de alerta e exige a avaliação de situações concretas envolvendo trust.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor de Tributação das aplicações financeiras, empresas offshore e trusts no exterior (2024), Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais (2023), do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2018, 2022 e 2025), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.
