Por Ana Luiza Naback
O falecimento de um sócio em uma sociedade empresária pode ser traumática não apenas para a família que perde seu ente querido, como para os negócios. A situação se torna ainda mais delicada quando os sócios não pertencem à mesma família, dado o potencial explosivo que a sucessão pode desencadear.
O Código Civil, em seu artigo 1028, afirma que em caso de falecimento de sócio, a sua quota será liquidada, exceto se o contrato social dispuser diferente (inciso I), se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade (inciso II) ou se, por acordo com os herdeiros, ocorrer a substituição do sócio falecido (inciso III).
Enquanto a liquidação, a dissolução (parcial ou total) ou mesmo a substituição do sócio falecido são opções vistas na esmagadora maioria dos atos constitutivos registrados, a opção “exceto se o contrato social dispuser diferente” fica normalmente responsável por tutelar os aspectos procedimentais da implementação das opções dadas pelo texto legal.
Mas é só isso? A função dessa previsão normativa fica limitada a tão somente dispor sobre regras de como se dará a dissolução, a liquidação, a apuração dos haveres ou a substituição do sócio falecido?
Embora muitos possam responder prontamente que sim, a verdade é que esse artigo do Código Civil pode – e merece – ser mais explorado, aflorando-se um campo muito fértil para enriquecer planejamentos patrimoniais e sucessórios e, sobretudo, para assegurar mais vida útil às sociedades empresárias quando o evento morte de um sócio surgir para desestabilizar as relações societárias.
De acordo com pesquisas do IBGE e da PWC, principalmente quando se fala em empresas familiares no Brasil (ou seja, 90% delas), poucas sobrevivem às trocas de gerações. Para se ter uma ideia, um quarto das empresas não sobrevive à sucessão dos herdeiros em primeira geração e apenas 12% delas chegam à terceira geração. A quarta geração, então, nem se fala, apenas 3% das sociedades resistem.
Para além das questões mercadológicas e financeiras, boa parte desse percentual crítico de sobrevivência intergeracional das empresas se deve à forma como são constituídas e reguladas, se há ou não boas regras e práticas de governança e, sobretudo, se a empresa, ao ser constituída, já está pronta para ser sucedida.
Em vista disso, o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) proferiu relevante decisão no Recurso nº 14022.116144/2022-57, em um caso cujo contrato social da empresa foi mais além e explorou a previsão do art. 1.028, inciso I com muita perspicácia, contornando essa situação e concedendo mais autonomia às sociedades quando do falecimento de sócio. Trata-se da possibilidade de alienação automática das quotas sociais.
O caso concreto envolveu uma sociedade empresária cujo contrato social dispunha que em caso de falecimento de um dos sócios haveria a alienação automática da sua participação societária ao sócio remanescente, conforme regras de apuração e preço previamente estipuladas. Dessa forma, sobrevindo o falecimento, a alteração societária de alienação das quotas seria registrada na Junta Comercial, sem a necessidade de passar por um inventário, otimizando, com isso, tempo e gestão, essenciais à sobrevivência das estruturas empresárias.
A Junta Comercial do Rio de Janeiro (JUCERJA), analisando os aspectos objetivos e extrínsecos do referido contrato, deferiu seu arquivamento, porém a Procuradoria não concordou e interpôs recurso. O argumento utilizado para recorrer foi de que seria imprescindível para o arquivamento da alteração societária a existência de alvará judicial ou de escritura pública de partilha autorizando a alienação das quotas ao sócio remanescente, respeitando, assim, a previsão contida na IN DREI nº 81/2020 do próprio DREI.
Em resposta ao recurso, a sociedade argumentou que não havia nenhuma irregularidade a ser sanada nem violação à IN nº 81/2020, pelos seguintes motivos: a) autorização legal contida no art. 1028, I, do CC, ou seja, as partes possuíam liberdade viabilizada por lei para dispor o que aconteceria com as quotas sociais em caso de falecimento; b) partes plenamente capazes deliberaram, em vida, sem vício de consentimento, a destinação de suas referidas participações societárias; c) igualmente, o contrato dispunha de previsões objetivas de apuração e valoração dessas quotas do sócio falecido e, por fim, d) o valor da alienação seria entregue aos herdeiros no contexto do inventário, para a respectiva partilha e recolhimento do imposto de transmissão.
Com isso, todas as regras de direito estariam preservadas, não havendo que se falar em vício do negócio jurídico, o qual cumpria com as exigências de validade insculpidas no art. 104, CC, ou seja, partes capazes, objeto lícito, possível e determinado, preço determinável e forma prescrita em lei.
Remetido o recurso ao DREI, o Departamento conferiu razão à sociedade empresária, reconhecendo como perfeitamente lícita a previsão da alienação automática das quotas societárias, afirmando ser despiciendo alvará judicial e/ou escritura pública de partilha para arquivamento do ato. Segundo o DREI, cumpre destacar que a Lei da Liberdade Econômica é cogente ao dispor que nos negócios empresariais deve prevalecer a vontade das partes, desde que não haja expressa disposição legal em contrário, e que à Administração Pública e demais entidades cabe evitar abuso do poder regulatório de maneira a introduzir limites indevidos à formação das sociedades empresariais ou de atividades econômicas.
Sendo assim, há, a partir dessa decisão do DREI, um convite especial para que todas as sociedades empresárias passem a rever seus atos constitutivos, explorando com mais afinco a permissão legal do art. 1028, I, do CC. A alienação automática das quotas merece ser vista não como um mero tratamento paliativo para garantir algum conforto e sobrevida às empresas em sucessão, mas como o remédio que pode salvá-las.
Ana Luiza Ribeiro Naback é advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, , e associada do departamento de wealth planning do BLS Advogados em Belo Horizonte/MG.